"Por quê?"



"Por quê?" - Não faça desta pergunta uma arma, a vítima pode ser você!

9 de set. de 2010

Por quê? x Por que não?

"Por quê?"- pergunte em abundância, mas não espere por respostas certas. Afinal, na vida, nunca encontramos respostas perfeitas. E, se porventura houver algumas que sejam, digamos, adequadas, raramente serão únicas. Porém, a pergunta é boa, quando não nos toma muito tempo. Por quê? Porque pontua. Marca onde está a dúvida. O que já é grande coisa. A confusão do olhar nunca é bem-vinda. O que faz mal é perdermos boa parte do tempo à espera de respostas; é nos deixarmos imobilizar, perscrutando possibilidades que raramente haverão de se confirmar. Melhor é passar para a próxima etapa e seguir vivendo. Melhor é estender a pergunta e transformá-la em "Por que não?". O "por que não?" projeta-nos a uma ação, contrapondo-se à natureza paralisante do "por quê?" Não exige respostas, explicações, sofismas, só atitudes e tentativas. Na incerta busca por respostas, há o risco de sermos neutralizados pelo excesso de cautelas, miopias ou obsessões que não levam a lugar algum e deixam o ar viciado. Estamos aqui mais para viver do que para pensar o viver, não é mesmo? Deixemos a tarefa de pensar os escombros da existência para os filósofos. Temos um compromisso com a nossa própria história, que deve se fazer contar. Vivamos então para poder contá-la. Vamos ao próximo passo, sem medo e sem amarras. Por que não?

14 de ago. de 2010

Trajetória dos erros

Primeiro, tenta-se a estratégia, a razão pura e kantiana, a lógica dialética, o bom senso, o caminho linear e claro, e todos os recursos racionais. Você sinaliza, aponta, tenta acertar, tenta impedir o pior, mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Depois, vêm as contorções, as confusões, as contrações, as digladiações, as turbulências emocionais, o inconformismo, a impotência. Você quer salvar a história, a qualquer preço, por achar que é uma história maior, mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Segue-se então uma certa melancolia, a frustração de ver que a história lhe escapa das mãos, e já não há como conduzi-la unilateralmente. Você ainda tenta mais um pouco, porém já bem mais descrente. Palavras e movimentos se desencontram, sintonias se perdem, encantos se desfazem, e a plenitude vai se esfacelando paulatinamente. Nada mais parece inteiro, absoluto, inabalável, íntegro, no lugar. Não há lugar. Tudo é fração, e, por ser fração, perde força. Mais uma vez, agora sem tantas expectativas, você insiste em refazer o pequeno feudo encantado e feliz. Mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Por fim, e por cansaço de dar murros em ponta de faca, de não compreender e de não ser compreendido, chega-se ao 'tanto faz', que é a mais medíocre das posturas, mas, certamente, a menos dolorosa. Estaria tudo certo, não fosse um único inconveniente do 'tanto faz': o risco de não guardar boas e grandes memórias, limitando-se à pequenez de banalizar tudo o que foi imenso com suas propriedades anestésicas. Mas agora tanto faz...!

13 de ago. de 2010

A dor de não despencar

E então, quando menos se espera, a gente leva um golpe. Até aí nada de inusitado. Golpes acontecem a todo instante, a diferença está em como cada um lida com eles. Então eu pergunto: de quem é a dor maior? De quem se descabela, se desorienta, se fragiliza, veste o papel de vítima, inspira culpa, cuidados e piedade? Ou de quem segura a onda; daquele que, como uma árvore, morre de pé, que reza sua dor em silêncio, que briga com todas as tensões e encara o rosto feio das mágoas para, num esforço sobre-humano, tentar seguir em frente sem fazer alardes, sem insistências vãs, sem se tornar um peso pra quem quer que seja? Fica no ar a questão. O sibilante choro dos 'ingênuos' ou a discreta contenção dos 'fortes'? Seria o frágil tão frágil e o forte tão forte? Muitas vezes, é justamente o inverso, e é preciso relativizar.

Já estive nos dois lados. No começo dessa longa estrada, fiz barulho, gritei, chorei e apelei, inconformada. E, enquanto duelava comigo e com o mundo, achando que não suportaria golpes e perdas, a dor ia se dissipando, sem que eu percebesse, até sumir por completo. Passado algum tempo, já nem me lembraria mais das tão dramáticas contusões. Era muito fácil passar para uma próxima etapa, até por causa das hemorragias. Ainda havia uma sucessão de golpes pela frente. Mas, ao longo dessa corrente de desassossegos, passei a achar feio as reações intempestivas, primárias e estridentes. Ainda que eu conseguisse lucrar algo com elas, nada acontecia pelo que eu era, pelo fluxo natural da vida, mas pela pressão, pelo pieguismo, pelo cansaço, e muitas vezes pelo desconforto que eu, intencionalmente, causava no outro.

Então passei para o outro lado, 'precisei ser forte'. Não desmontar, não despencar, não desarrumar os cabelos, não borrar a maquiagem, não me esquecer das outras peças da engrenagem, por mais lacerante que fosse uma situação. Não que os 'fracos' confessos sejam seres desprezíveis, mas é que a vida não os perdoa, e, no fundo, nem eles mesmos. Fraquezas todos temos, ou não seríamos humanos. Mas a vida não gosta da sua cara (da fraqueza), tampouco a respeita. E aos que não querem pagar o preço de expor suas fraquezas não resta outra escolha senão se armar de uma pseudofortaleza. E aí, além de sofrerem as dores lancinantes de golpes, perdas ou danos, ainda carregarão o peso dessa consciência. E como dói não poder despencar! Como dói ter de prosseguir nas frias trilhas dessa relativa e aparente lucidez. Como dói não berrar a nossa dor, neutralizar nossos espasmos, sofrer para dentro.

As pessoas olharão para esses 'frágeis às avessas' e dirão: "Eles sabem se virar, são bem resolvidos!". E muito pouco lhes darão, por acharem que não é necessário. Mais ocupadas com os carentes de plantão que as sugam, são incapazes de imaginar como é pungente, naqueles que 'sabem se virar', a dor de não despencar. Estão longe de perceber que, para que isso acontecesse, foi preciso que esses patéticos 'equilibristas', que trazem na alma um quê quase chapliniano, fizessem morrer dentro deles um pedaço da própria vida. Um pedaço que morreu de pé, sem despencar.

O medo do apego e o apego do medo

Não é de se estranhar o medo do apego em quem já se esborrachou mil vezes pelos trilhos da vida e do tempo. Mas como é difícil não se apegar ou impedir que a nós se apeguem! Pelo menos nas formas superlativas. Como é difícil fingir que ignoramos o olhar suplicante dos carentes de afeto; erigir um muro que impeça a ultrapassagem ao nosso universo mais íntimo e vulnerável; medir o tamanho de um abraço e a temperatura das palavras. Há que se pisar em ovos. Porém, fato é que quem assim se manifesta geralmente tem lá suas razões. Dentre elas, a de não querer abrir caminhos para uma possível dependência emocional - do outro e, por vezes, de si mesmo. Quem opta pelos desapegos decerto muito já se apegou. E entendeu que de grandes apegos podem vir grandes dores mais adiante. Entendeu que laços, de início suaves, podem se transformar em nós inextricáveis, dissolúveis apenas ao corte brusco da lâmina fria e asséptica da razão. E esse "desapegado", portanto, não haverá de querer que o outro passe a morar em seu universo para ter que sofrer depois, quando descobrir que o melhor é habitar a si próprio, acima de tudo, ainda que numa construção precária. Apego, em princípio, é coisa boa e natural; o problema é que, com o tempo, esse sentimento - que nem sempre tem a ver com amor ou amizade em estado genuíno - tende a convergir para os exageros, e isso não é bom. E não é mais forte ou mais frio aquele que tenta evitá-lo. Muitas vezes o medo do apego carrega o apego do medo à realidade de quem muito sofreu. Medo de perder novamente a si próprio. Medo de ver ou outro se perder em quem, depois de múltiplos açoites, conseguiu se encontrar.

Procura-se

Foi vista pela última vez perambulando descalça e quase feliz pela Avenida dos Incautos. Sorridente, cantarolava uma canção não identificada e olhava para o céu. Há alguns dias - ou anos-luz, não se sabe bem ao certo -, a criatura desapareceu. Uns dizem tê-la visto na esquina da Rua Solidão com o Beco do Mistério. Outros garantem que passaram pela foragida na Praça dos Delírios. Se alguém tiver notícias deste ser errante, favor não telefonar nem avisar à polícia. Chame-a baixinho pelo nome e diga que não há mais perigo. Que o mundo às vezes é bom. Que ela pode voltar para a sua dona e criadora, que por ela procura, inconsolável. Afinal é a sua melhor criação, porquanto a única verdadeira, embora não explicável pela razão.

Sentido (ou falta de)

Tragam-me algo que me acorde os sentidos. Um álcool forte. Um impacto súbito. Um amoníaco. Uma droga. Um berro que se faça ouvir. Mostrem-me algo que faça sentido. Meus sentidos precisam de sentido. A vida, esta a mim me parece um grande absurdo. Falta uma palavra-chave ou a última peça do quebra-cabeça. Falta um porquê definitivo para todos os comos, quandos, ondes e quens. E quanto mais prossigo, menos sentido faço, menos sentido vejo nas coisas, nas pessoas, no tempo. Eu vivo. Mas e daí? Vivo apenas. Vivo com a sensação de faltar algo visceral. Não sou triste nem feliz. Sou a oscilação constante entre um estado e outro. Não sou mais nem sou menos. Sem escolhas, cumpro a existência. De tanto existir achei que pudesse alcançar um sentido. Mas não. Nenhum sentido. Passeio entre o moto-contínuo e o fogo fátuo, entre o ufanismo e a hipocrisia. Pior é se ver de fora do Grande Teatro. Se ao menos representasse bem, talvez o papel me trouxesse ao menos um falso sentido. Mas não sou das farsas. Pelo menos, não mais. Não fui boa atriz neste estrondoso espetáculo. Fui um fracasso dramatúrgico.

Falaram-me, certa vez, que o sentido da vida estava no amor. De fato, em todas as vezes que amei de amor, tive a ilusão de ter todos os sentidos exacerbados e de fazer todo o sentido do mundo. Na experiência do amor havia uma espécie de sagração, uma facilidade imensa de saber me encontrar. Eram experiências entorpecentes. Nada ao redor havia mudado. Mas o olhar de quem ama jamais se convence dessas imobilizações. O olhar de quem ama quer ver beleza, generosidade, cor e magia em movimento. Mas, talvez em função de tanto movimento, esses amores passam (não deveriam). E a relidade pós-euforia vai constatar, por repetidas vezes, que nada mudou. Ninguém mudou. Era tudo fruto da alucinógena condição de quem se lançava às paixões. Uma extasiante e deliciosa alucinação. Válida seria se não fosse tão espasmódica, e se nos impedisse de, logo adiante, quando o amor acaba, darmos de cara com a consciência dessa alucinação. E quanto mais consciência, menos sentido.

Levi Strauss levantou a voz e disse: "Tudo oferece um sentido, senão nada faz sentido". Mas o sentido que tudo oferece, aos meus olhos, é uma tremenda falta de sentido. Uma loucura. Uma inversão. Uma subversão. Um passatempo enquanto a gente espera pelo último de nossos dias.

O leitor certamente verá neste texto o reflexo do pessimismo. Ó, não! Não o é. Brinco com todas essas peças soltas, rio delas, danço com o acaso. O que falta mesmo é sentido. Talvez não haja profundezas, talvez não devêssemos colocar tantas expectativas em SER. Ou talvez eu não pertença a este mundo, que parece não ter nada de meu e onde seria uma visitante estranha, sentada na ponta do sofá. É isso...

Razão e Emoção

heart and mind

A emoção é a vida em ebulição. É densa, quente, imprevisível e tocante. É o movimento, as tempestades e os raios de sol da existência. É genitora de risos e lágrimas, de iras e paixões. Pode ser feia e lúgubre, pode ser deslumbrante e reluzente. Pode ser tudo que não passe despercebido, porque é hiperbólica. A razão, sua antípoda, já não gosta de aparecer. É discreta, silenciosa, comedida, desprovida de calor e ímpetos, como todo agente que calcula, pensa, se defende e se protege. Decerto, na maioria das vezes, um ser racional já foi escravo de suas emoções em algum tempo remoto. E ficou tão assustado com os espasmos delas, com sua força transformadora - quando não destruidora -, que se rendeu ao sossego morno do pensamento lógico, objetivo, estruturado, para poder melhor decidir e, quem sabe, reduzir um pouco do sofrimento que a vida muitas vezes impõe.

Razão e emoção não deveriam ser conflitantes. Uma não é melhor nem pior que a outra. São apenas diferentes. Uma revolve, outra resolve. Uma envolve, outra desenvolve. Ocorre que, na medição de forças entre esses dois parâmetros tão antagônicos, o indivíduo que os vivencia é o grande perdedor. Quando a razão briga com a emoção, ou vice-versa, surge uma espécie de paralisia, fruto de um caos entre ideias (razão) e sentimentos (emoção). E, a partir daí, uma série de outros estados indesejáveis se sucedem: medo, insegurança, anulação, desconfiança, e por aí vai.

Levando-se em conta que a razão não deve adentrar o território da emoção, levanta-se a dúvida: qual seria a situação ideal então? A resposta que aparece como óbvia aos meus olhos é única: razão e emoção devem andar de mãos dadas, no mesmo nível, respeitando-se mutuamente e sabendo, cada uma, a sua hora de entrar em cena. Não podem atuar de forma concomitante, é fato. Afinal, não é da natureza do coração pulsar no cérebro, assim como não é da natureza do cérebro planejar um coração. Não se ama com a cabeça, é verdade. Mas, por outro lado, é com ela que se decide por um amor em paz ou pela autopreservação.


Não ficar no problema, porém sem dele fugir.

Optar por não ficar no problema não significa dele fugir. Fugir do problema é quando se desconversa, quando não se enfrenta as verdades, quando não se encara os fatos, quando se mascara uma realidade. A fuga é um movimento fácil. E é o que a maioria faz para evitar desconfortos imediatos. Há sempre uma porta que foi esquecida aberta ou passagens subterrâneas que levam à ilusão de um outro lugar.
Já escolher não ficar no problema exige muito mais de nossas forças e de nossa compreensão. Neste caso, a gente enxerga tudo, constata o obstáculo e sai sem fugir, espreitado pelo olhar vigilante da consciência. Sai porque entende que permanecer no que foi percebido como problema é o caminho mais fácil para se perder e se ralar. A fuga, mais cedo ou mais tarde, será sempre surpreendida pela própria vida que vem nos cobrar. Mas a opção consciente de não ficar é quase um ato de heroísmo, é uma escolha dolorosa para evitar dores maiores.

Um problema é sempre um problema, desde o momento de seu diagnóstico. E insistir nele é uma teimosia improfícua. A melhor solução é, a meu ver, tentar eliminá-lo, sobretudo se o impasse não se resolve e torna a se repetir e repetir. Porém, sem fugir... Assumindo todos os ônus e riscos, sentindo as dores de todas as lesões que essa escolha ocasiona.

Mas, afinal, o que é um problema, aqui neste contexto? - alguém poderá indagar. Um problema é tudo aquilo que suprime o bem-estar, que gera tensão, desassossegos ou inseguranças, eu diria. E quem gosta e consegue conviver com isso a longo prazo pode estar a um passo da insensatez. Eu não, eu não...

Fugir não fujo, mas escolho não ficar.

Decidir? Só quando necessário.



A cada vez que tomo uma decisão, morro um pouco. A própria palavra traz em si uma "cisão". E o pior: nunca se sabe se a decisão tomada foi a melhor, já que não nos é permitido saber aonde levariam os caminhos descartados. Por mim, não decidiria nunca. Deixaria sempre a vida me levar e os ventos soprarem os caminhos. Quando posso, é isso que faço mesmo, sem culpa e sem medo. Mas há ocasiões em que não há escolha a não ser escolher, ou seja, decidir.

Nem sempre é fácil lidar com tomadas de decisão. Mas a experiência e uma sucessão de tombos nos fornecem um elemento importante para isso: a razão. Sim, a razão. Não dê ouvidos a quem lhe diz: "Decida com o coração". Errado. Ouça o seu coração, sim, mas decida com a razão. Coração não sabe decidir, não sabe fazer cortes. É impreciso e se alimenta de sonhos. Na hora de decidir, é mesmo a cabeça que entra em cena. E, ainda assim, como é difícil ! Pelo menos para mim, que tudo faço para não me arrepender no futuro.

E quanto mais possibilidades à nossa frente, mais difícil será decidir. Prefiro que a vida me dê um número modesto de opções do que uma enxurrada delas. Quando há a possibilidade de não decidir, é essa que escolho. Decido não decidir. Porém, quando não tem mais jeito, quando a não decisão (que não significa indecisão, no meu caso) implica sabidamente um problema, então encho-me de coragem e vou lá. E aí faço direito, "comme il faut". Nada de imediatismos, nada de açodamentos. É um processo longo. Pensar, avaliar, comparar, priorizar, autoconhecer-se, estimar: estes são os verbos. Com eles vou lá e faço o corte (ou os cortes) necessário, ciente de que estarei perdendo algo que nunca vou poder vivenciar, talvez até a melhor parte - como saber? Enfim, pode-se querer tudo, o que não se pode é ter tudo. O coração pode doer, que doa. Talvez passe, talvez não. O processo é duro, inexorável.

Para finalizar, depois de pensar e pensar, se ainda houver dúvida, melhor não decidir. Decidir na incerteza é decidir errado. Tremeu? Recue. Oscilou? Espere. Se isto aconteceu, é porque a hora de decidir não chegou.


Existe 'caso mal resolvido'?

Já acreditei nessa história de 'casos mal resolvidos'. Mas, com o tempo, compreendi que eles não existem. Os protagonistas desses 'casos' é que ficam bem ou mal resolvidos. Há quem pense que para resolver uma história que não terminou do jeito desejado é preciso esgotar todas as palavras ou mergulhar até o mais profundo talvegue de um rio de emoções desencontradas. É um ponto de vista, mas não o meu. Se alguém me diz: "Tal relação ficou mal resolvida", limito-me a comentar: "Então pronto! Ficou resolvida como 'mal resolvida.'" Isso porque muitas soluções são mais facilmente encontradas dentro - e não fora - de nós. A conversa que temos realmente de ter é com os nossos próprios botões, e a partir dos fatos disponíveis. Uma sequência de fatos e de comportamentos é eloquente o bastante para fornecer o diagnóstico (e o prognóstico) de qualquer relacionamento.

Além disso, se pensarmos bem, nenhum final é feliz, ideal, satisfatório. Sair de uma relação com as palavras certas, dissecando o adeus em minúcias, numa interminável e desgastante sessão de perguntas e respostas, também pode ser doloroso. E, ainda por cima, não é garantia de que os sentimentos não se tornarão recorrentes. Talvez o mais indolor dos finais seja aquele em que o sentimento se dissolve durante a própria relação. Assim, sem a força desse sentimento, que morreu sem ser percebido, todo o resto se transforma em desimportâncias, e o ponto final acontece quase que naturalmente, sem traumas, nem expectativas, nem recalcitrâncias. Mas nem sempre é assim.

Em conversa com amigos, sempre vem à tona esse papo de "casos mal resolvidos". Quase todo mundo tem um pra contar. Ouço-os se queixarem, com frequência, de que, em suas frustradas relações, "ficou algo por dizer", "ficou algo por entender", e que "é preciso um último diálogo" para virar a página definitivamente (se é que o definitivo é mesmo definitivo). Mas será que a vida útil do romance não foi feita para acabar justamente naquela página? Nem todas as histórias são brindadas com finais felizes e esclarecedores, o que, em hipótese alguma, é motivo para menosprezar a sua importância. E depender da outra parte para determinar cada final de caso, à nossa conveniência, admitamos, é bastante trabalhoso.

Também não é incomum ver pessoas acorrentadas a impasses de seu passado, ao longo de anos, até mesmo décadas. Neste caso, nem o tempo, que sempre ajuda a pulverizar dores, mágoas e culpas, conseguiu ser um bom remédio. E aí a coisa pode acabar assumindo níveis patológicos. É preciso tomar cuidado. Não há nada pior do que se tornar um prisioneiro, principalmente do passado, que é tão estático quanto as velhas fotografias que o representam sem nada poder fazer.

Não estou aqui a subestimar a dor de ninguém. Sei que lidar com sentimentos não coisa é fácil, sobretudo com sentimentos que um dia foram feridos. Mas penso que, se sedimentarmos o eixo de nossa órbita em nós mesmos, e não no outro, tudo ficará mais claro. Por exemplo, um sintoma de saudade não precisa ser torturante, nem condicionado ao personagem que a ela deu origem. A saudade é nossa e só nossa; permitamo-nos senti-la, sem resistências, por alguns momentos, e pronto! Depois ela se vai, ainda que venha a nos revisitar mais adiante. Não temos necessariamente que agir ou criar expectativas por causa de súbitas nostalgias; isso gera tensão. Certamente, com a sucessão de novas experiências e urgências, certas lembranças tendem a se tornar cada vez mais raras. Se uma história terminou era porque assim tinha de ser. E que importa se ela pode ou não retornar amanhã? Amanhã é amanhã, e viver é uma urgência. Tudo faz parte dessa louca aventura de existir: o bem, o mal, o prazer, a dor, os erros, os acertos, as dúvidas, as certezas, tudo... E nada permanece no lugar o tempo todo. Só nós, que moramos dentro de nós... Vivamos, pois, a partir de nossa única e inevitável existência.


A dor é a saudade do riso

Todo drama nada mais é do que a saudade do riso. Só que o drama costuma tomar proporções gigantescas, assumir um aspecto folhetinesco, exagerado. Parece até que as dores são providas de importância e seriedade maiores do que aquelas que uma alegria contém. Mas não é bem assim, creio. Quando doemos, estamos sentindo falta de momentos felizes, despretensiosos e simples. Falta desses momentos que, quando irrompem, parecem ser feitos de pequenas dimensões porque estamos ali distraídos e ocupados demais em vivê-los para prestarmos atenção no seu tamanho ou tentar explicá-los. Pois ouso afirmar que o riso é a grande dimensão da existência, é onde nos libertamos e exercemos nossa função principal (viver em prazer), já que investimos nele o melhor de cada sentido vital.

Se as dores parecem mais hiperbólicas é porque, talvez, seu eco reverbere mais polifonicamente dentro de de nós. E tal ocorre porque, para senti-las, há prejuízo e descompensação dos sentidos, que se apresentam bem longe de sua plenitude e muito voltados para dentro, saudosos de passados ou medrosos de futuros.

Portanto, o que eu teria a dizer aqui e agora é: investir na alegria e no riso, investir na leveza de ser, trocar luminosidade com o outro. Há sempre um lado engraçado de se ver a vida, até mesmo a partir dos nossos próprios erros e ruínas. A comicidade pode ser algo muito mais sério do que se possa supor. Então, a palavra de ordem é "sair em busca do riso" sempre que possível.

Nem sempre é possível, bem o sabemos. Não somos hienas ufanistas, tampouco o riso cabe em todas as horas. Mas também não chamemos pelas dores, colocando sobrecargas desnecessárias nos acontecimentos. Elas têm uma capacidade invejável de se apressar em chegar, sempre que as chamamos.

Investir no riso e reinventar momentos de alegria é a grande arte. E não é uma arte menor, ao contrário do que possa parecer. O réquiem trágico de uma dor não canta senão o desejo de repetir os dias de simples e despretensiosas felicidades.

Coisa de alma

Elas são teimosas. Teimosas de existir. Teimosas de não se deixarem prender às ordenações. E então o desejo insiste, apesar do desaconselhável, do inadequado, imprudente, incoerente, irreverente. E tudo por dentro diz SIM quando o resto é feito de NÃO. Coisa de alma. Alma não conhece limites, diferenças, distâncias, errado ou certo. Alma simplesmente deseja. Não importa se o corpo caminha em direção ao precipício, não importam as contra-indicações, não importa o impossível. Não há como impedi-la de cumprir sua existência. E cumprir sua existência significa apenas sentir. Inapelavelmente sentir, entre todas as discordâncias dialéticas, entre todos os erros do tempo ou do espaço. E, quando a realidade parece querer esmagá-la, ela sonha para se salvar. E se liberta...


Quando o SIM diz NÃO




A gente fala, a gente sinaliza, a gente mostra o perigo, a gente chama de volta, e não veem, não ouvem. Por meses, anos, tentamos alertar que, se certos erros não forem sanados, tudo se vai no escorredouro do tempo, de modo irreversível. E que haverá um momento em que todos os esforços terão sido em vão. Mas parece que não nos ouvem. E, se ouvem, não nos acreditam. Nada fazem, nada tentam mudar, continuam a repetir os mesmos movimentos - ou a ausência deles - como se fossem divindades acima do bem e do mal, que pudessem assumir todos os controles do destino e daqueles que por ele passam.

Então, chega a hora inapelável do NÃO, e tudo muda. Quando todas as tentativas já se exauriram, aí conseguem enxergar o SIM. Querem porque querem o SIM, quase que obstinadamente. Chegam a prometer o mundo, sem ao menos consultá-lo sobre sua disponibilidade de ser ofertado. Mas é só porque o SIM agora está longe, inacessível, fora de controle. Aí tentam fazer em um dia o que se recusaram a fazer durante anos. Insistem em nos convencer de que tudo será diferente, de que tudo será como antes amanhã... Não, não e não. Quando se deixa escapar o tempo dos reparos, não há mais o que se fazer. O tempo oxidou todos os componentes da história e suas possibilidades. Nada resta a não ser imagens congeladas de um passado remoto, quase irreal. É assim...

Não sei por que alguns só compreendem o SIM no momento inexorável do NÃO. Pergunto-me se o homem não precisa da eterna insatisfação para dar continuidade à sua sobrevivência emocional. É uma pena... É uma pena... Não era pra ser assim.

Errando o texto

Algumas vezes, a gente erra o texto. Outras, o texto erra a gente. Quando o texto erra a gente, não é nossa culpa; culpe-se a vida, o destino, o tempo ou qualquer fenômeno externo a nós. Mas quando a gente erra o texto, aí é tudo de ruim. É algo assim como a fragmentação de uma mensagem que pretendeu acertar. É a frustração do verbo, a antiexpressão, um azul que desbotou, um atentado à comunicação, que, por sua vez, é um atentado ao que se pode chamar de encontro. E, no final, só nós resta a triste tarefa de admitir o erro. Isto corresponde a um desencontro.

Errar o texto é uma falha frequente quando o pensamento não está organizado ou quando as sensações se confundem. Errar o texto significa que não detemos o controle momentâneo da nossa existência. Acontece muito quando há algum tipo de medo ou conflitos internos presentes. Ou, ainda, quando o possível receptor do nosso verbo não se encontra aberto e legível. Algo bastante comum entre os mortais.

Só que nenhuma dessas teóricas explicações minimizam o meu mal-estar ao errar um texto. Não gosto e não gosto e não gosto. Não gosto porque vivo de me pensar - pelo que pago preço alto -, vivo de previsibilidades, vivo de arquitetar estruturas e de me proteger contra o desconhecido. Assim, errar um texto significa me errar. E hoje eu me errei. Paciência... Agora é tentar arrumar as palavras na próxima vez. Mas aí é a "próxima vez", e só Deus sabe o que, quando e com quem vai ser a próxima vez.

Ih! Não era nada disso que eu queria dizer. Errei o texto todo de novo.

Caos

Já se sentiram assim, de um jeito em que qualquer processo criativo se torna inexequível? Assim, como se a existência estivesse sob o efeito de algum gás paralisante? Assim, entregue a uma lassidão que anula todo tipo de interferência sobre as coisas? Assim, como se se colidissem todos os pensamentos, formando destroços envoltos em uma nuvem confusa? Assim, como uma negação heliotrópica? Como se o Nada se instaurasse sobre as nossas soberanias, sejam elas de fantasia ou realidade? Já se sentiram assim? Pois é assim que me sinto. Mal consigo começar a contar a mais simples das histórias.

Tudo se confunde. E o mais sábio, nessas horas, é se abandonar às confusões. Tentar explicá-las, quando elas estão no auge de sua hiperatividade, é como lutar contra as correntezas. Não ouso me manifestar quando duvido de tudo (até de mim), quando as palavras são improfícuas para assinalar sensações como estas. Sensações de hecatombes e maremotos; sensações que misturam dores e prazeres; sensações que estão para além da História. Sensações que, inevitavelmente, passam...

Avesso semântico



Pior do que não encontrar as palavras é ter de medi-las. Pior do que ter de medi-las é arriscar errá-las. Pior do que errá-las é ter de engoli-las, e ficar com esse peso na boca do estômago comprimindo o tanto que se desejou dizer. Ajuda-me a libertá-las, e eu as pronunciarei como quem canta uma canção. (Marcia Cardoso)

Sem metades

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Não me deem metades. Não me acessem pela metade. Não gosto de metades. Nem mesmo de caras metades (onde dois ficam reduzidos a um). Não gosto de metade do caminho, não gosto de pessoas pela metade, de conversas pela metade, de meias verdades, de meias mentiras. Se não posso ter a unidade, se não posso ser a unidade, prefiro então pequenos dízimos, quando não o nada. Os dízimos pelo menos funcionam como modestas sugestões, preâmbulos de alguma coisa, qualquer coisa que pretenda a sua integralidade mais adiante. Mas metades não, porque não são nem uma coisa, nem outra. Ou pior: podem ser uma coisa e outra, sem a convicção de ser. Metade de mim não sou eu. Viver pelo meio eu não vivo. Tudo o que eu puder ser, viver ou doar é integral, ainda que seja por um minuto, ainda que não haja sequências, ainda que eu viva o supérfluo ou a contradição. Essa divisão no meio é ingrata. E eu, que só sei ser inteira, em cada minúsculo movimento, vivo batendo de frente com a vida, repleta de meios-termos e de seres de meias-faces.

Note-se aqui que não falo de extremos, mas de inteiros, de um... Não falo de intermediários, mas de metades. É preciso não confundir intermezzos com metades. As primaveras, por exemplo, são agradáveis estações intermediárias, mas são primaveras inteiras e cumprem todo o seu ciclo. Gosto do intermediário, do equilíbrio, só não gosto de metades, do “pela metade”, do meio sim ou meio não. Metades são medíocres. Se não puderem me dar o inteiro, deem-me o nada, mas nunca a metade. Metades não matam minha sede, que é grande e inteira.


Álgebra amorosa

Estava ela às voltas com uma equação irresolvível. Sabia apenas que havia um único elemento não-incógnito: o fato de "não poder ser". É... Esta parte estava bem clara: "não podia ser". Sabia disto desde o começo, sempre soube. Mas o que fazer com os outros tantos x e y que se proliferavam a partir do coração? Com esses incógnitos e perigosos elementos? Como resolver essa torturante equação? Não podia ser, mas era inevitável impedir todo o resto que era antes mesmo do "não poder ser". A cada dia os elementos incógnitos do coração ganhavam vida própria e perpetravam as vísceras e a alma.

O que fazer com esses inúteis e soberanos sentimentos? - pensava. Onde colocá-los? Como processá-los? Como legitimá-los? Lugar para eles não havia no mundo. Uma grande loucura. Mas, certamente, haveria de existir alguma matemática possível. Impedir o fato seria um problema menor. É fácil impedir os fatos, na medida em que se cala a voz do desejo ou do amor. O mundo nada perceberia e, portanto, o salvo-conduto ficaria assegurado. Mas o que se faz com toda essa vida ao avesso? Por onde ela deve escapar? Não, não há escape imediato possível. E a compressão de tanta vida, por não caber nos recônditos secretos de um único ser, resulta em dor insuportável. Dor de ter de existir sem poder cumprir a própria existência. Ela já sabe que tudo em si vai doer. Vai doer muito. Mas sabe também que não vai morrer, para seu desassossego. Prepara-se. Caminha para a sua sentença, sem impedir o coração de desenhar seu curso à mão livre e invisível.

A única solução possível: não pode ser. Mas pode ser por algum átimo do tempo. Dias, minutos, segundos que sejam. E, quem sabe, nesse átimo de tempo, não se consiga tocar a eternidade? Então, tendo-se sobrevivido, tudo terá valido a pena.

Desconstruções

É... As pessoas saem de dentro da gente. Pelo tempo possível, tentamos segurá-las em nossos interiores, com alguma incrédula esperança de que elas não vão desabitar a nossa geografia; de que haverá um salvo-conduto ou uma razão que justifique mantê-las vivas e pulsantes em nós, tal qual sua antiga imagem no retrovisor da história. Passeamos por um sem número de ideias, hipóteses, concessões, explicações que possam evitar a desconstrução desses retirantes acidentais. Mas sabemos que é só uma questão de tempo. E essa saída do outro em nós é tão inóspita que não depende nem de nós, nem de quem sai. Acontece à revelia, muitas vezes ao ponto de nem sequer nos permitir lembrar quando o corte epistemológico ocorreu.

E assim as pessoas se vão do nosso pequeno universo sem perceberem, da mesma forma que não percebemos o momento em que o seu vazio se instaurou de vez. Damo-nos conta de que seu lugar não anda habitado quando nos surpreendemos sem fazer perguntas ou procurar respostas sobre os movimentos ou, muito mais provavelmente, sobre a ausência de movimentos que, decerto, determinou o exílio. Segue-se um lamento e, posteriormente, uma rendição final ao fato. Nada mais a fazer.

Não, pessoas não são substituíveis, é o que penso. Mas encontros sim. E sempre haverá novos encontros, novas chegadas, novas partidas e, até mesmo, novos reencontros. A vida não se imobiliza. E também tem aqueles raros personagens que hão de permanecer para sempre na bagagem de nossa existência, transcendidos e imortalizados.

Aos que ficaram, o meu eterno agradecimento pela solidez e grandeza do encontro "marcado". Aos que se deixaram partir: "Bon voyage" pelos caminhos invisíveis por onde não andarei.

Para quem está de saída

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Melhor não sair à francesa. Os franceses podem ser "très sofistiqués" em seu "savoir vivre", mas em matéria de saídas são um verdadeiro desastre. Melhor sair à brasileira mesmo; de preferência, com todas as letras e de cabeça erguida.
As formas de saída podem agravar ou atenuar o suplício das partidas. Não devemos bater a porta com força nem tampouco deixá-la entreaberta. Bater a porta com força nos torna ofensivos, deixá-la entreaberta nos torna covardes.

É, eu sei que não é fácil fechar a porta direitinho. Mas, saindo de maneira correta, ainda é possível preservar na memória o melhor do que foi vivido por detrás da porta que se fecha e permitir futuros reencontros, sob novas formas.

Aquele que fica provavelmente não há de merecer as fugas mal engendradas nem as incertezas que geram os verbos não pronunciados. É preciso dizer por que estamos saindo, pois é assim que libertamos o outro do fantasma das dúvidas, que tanto desassossegam a alma.

Aquele que parte deve fazê-lo em transparência, sem temer as consequências de seus movimentos, já que ninguém é obrigado a aprisionar-se no outro. E, certamente, esse outro há de compreender o movimento de saída, se a porta for fechada de maneira correta. Palavras resolvem tudo, por mais difícil que seja a pronúncia de algumas delas. Sua ausência, no entanto, pode ser mais ofensiva do que uma agressão física, por vezes.

Então, fechemos as portas da maneira certa, da maneira digna. Sem medos ou hesitações. Com todas as dores ou saudades antecipadas, mas com a integridade do nosso ser, com o rosto sob a luz, para que aquele que fica possa nos ver, nos compreender, e até mesmo ter a oportunidade de um adeus decente e o benefício de alguma eventual claridade que entra pela fresta da porta. E nada de fugir pela janela, porque aí a coisa piora.

Voz

Dentre as grandes doenças das almas urbanas, a que considero mais grave é o não saber ouvir. Dar ao outro o direito de voz é fundamental para um mundo mais humano e saudável. O que vejo hoje é um reino dividido entre seres com urgência de falar e seres que insistem em não ouvir. E esses seres se revezam em seus papéis intermitentes.

Talvez ouvir não seja mesmo uma tarefa simples, porque envolve elementos outros além de um simples ouvido. Quem se nega a ouvir o outro, na maioria das vezes, se nega também a ouvir a si próprio. E aquele que precisa falar acaba sendo um estorvo porque, ao tentar se expressar, impõe a seu interlocutor o risco de ouvir justamente os ecos de suas próprias profundezas, ecos que muitas vezes o ouvinte não quer escutar e dos quais vive a fugir.

O mundo está doente por falta de expressão. E a expressão depende do outro, de sua compreensão, ou mesmo de sua incompreensão, mas sobretudo do seu contato e calor. Negar o direito de voz a alguém é impedir esse alguém de se representar, de dizer "eu existo". E isto consiste, de certa forma, numa espécie de eutanásia existencial. É um pequeno crime por omissão, com que chega com uma série de atenuantes pouco convincentes: falta de tempo, de paciência, de disposição, oportunidade, sossego etc. É, precisa de tudo isso sim, tempo, paciência, disposição e muito mais. Mas, sobretudo, precisa que ambas as partes estejam ali inteiras, guardando algum respeito pelo ser humano e sua importância.

Nem sempre é um psicanalista ou um representante religioso o depositário certo das nossas manifestações. Ser ouvido por esses atendentes oficiais e oficiosos não envolve troca. Aquele que traz em si a urgência da voz não precisa apenas de um ouvido, precisa também saber que quem o ouve tem um coração, e que o sentido da vida está na permuta e na compreensão das experiências humanas.

Maldita sensatez




Questiono-me se esse centramento, essa sensatez, chega com a idade... Sinto falta das minhas loucuras, da vocação para transgredir, de não me importar com causas, efeitos ou coerências. Não faz muito tempo, a vida era um caleidoscópio, imprevisível em suas cores e desenhos. Os desejos eram tão fartos que não cabiam na existência. Eu não precisava fazer sentido, nem tampouco explicá-lo. Atirava-me à vida e aos sonhos, sem medidas, sem contenções. Era bom, era ruim, era tudo. Tudo no mais pleno estado de ser.

Aí vem o tempo - esse repetidor e emulador de experiências, esse aniquilador de substâncias redivivas, esse sinalizador de perigos, esse pretenso sábio no ofício da autopreservação - calar em mim as hipérboles, os derramamentos, os delírios, a loucura que me conduzia às nuvens ou aos mais profundos subterrâneos. Seria isso a "insustentável leveza do ser"? De tão esvaziada, flutuo sem peso e vejo a vida à distância, como se estivesse a observar um velho e conhecido fenômeno. Razão é sabedoria? A resposta é "não". Não se constrói grandes histórias com ela. Foi com as minhas loucuras que criei histórias sem fim, imortais, policromáticas. E, se elas me extenuaram, valeu o preço!

Maldita sensatez essa que me faz ficar no exato e seguro (?) lugar em que "penso" estar. Melhor sair deste chão duro.

Voyeurismo

Teu olhar...

Que me perfura com as 7 notas musicais,
Que me atravessa a bordo de um 14 Bis,
Que esconde os 7 Erros
Que ecoa aos 4 ventos
Transgride os 10 mandamentos,
Resume os 5 sentidos
E inventa sextos, sétimos, oitavos...

Teu olhar...

Que me diz sei lá o quê,
Que rasga a fantasia,
E não se deixa ver,
Que talvez guarde o mistério
De não ter mistério algum,
Que chama,
Que chama...

Teu olhar...

Meio SIM, meio NÃO
Meio quente, meio frio
Meio em paz, meio jazz
Meio-dia, meia-noite,
Tanto faz,
Tanto faz...

Teu olhar...

Que chora e que ri,
Tão longe daqui,
Tão longe e aqui,
Que remete a
Poetas e pássaros,
A profanos e sagrados,
A homens e guris.

E eu finjo que não vi...

Frequente estereótipo do vazio

Lá vai ele... De aventura em aventura, tentando se distrair de si, de algum casamento falido, talvez, do medo de abrir os olhos, de uma suposta insatisfação crônica, do vazio real, dos sonhos que não realizou e dos que não realizará. Mas ele sonha... Mas ele vai... Vai devagar, sem pressa alguma, porque pressa pode levar a lugares que não pode ou não quer chegar. Empurra com a barriga as ilusões bem construídas, as aventuras momentâneas, frágeis prisioneiras de seu vasto imaginário. Troca de ilusões, troca de emoções, troca de aventuras. Precisa ganhar tempo. Precisa sentir que vive, às custas da vida de alguém que lhe acredita.

E lá vai ele... Alguns, ao decifrarem suas fraquezas, dirão: "Pobre covarde!". Outros tomarão nosso personagem como um contumaz sonhador, um adepto do entretenimento passageiro, que não representa perigo à ordem social. Mas ele não se importa. Tanto faz o que dele pensarão. De aventura em aventura, o homem sem rosto vai passando por passar, com ares de vivre pour vivre. Inventa paixões imaginárias, se perde irresponsavelmente dentro delas, se perde dentro dele. Vive de se perder. Precisa se perder para não se achar. Perde-se com hora marcada. Até o momento em que avista o último limiar das margens que dividem a policromia de suas fantasias da monocromia de uma cinzenta realidade, a qual nunca ousará desafiar.

Lá vai ele... Não tão inócuo quanto parece. O invólucro da aparente sensatez e e da falsa alegria é mero artifício para colecionar mais um sonho, mais uma aventura. Falta-lhe coragem para se libertar, mas finge ser livre. Acredita que acredita em seu personagem, ainda que este se desfigure no último limite e ao primeiro obstáculo. Então é hora de fugir, foge de uma aventura para outra. Foge por não querer ver sua imagem refletida nos olhos de quem o contempla, ameaçando desmontar seus cenários surreais.

E lá vai ele... Deixando tombar os sonhos, ferindo um, ferindo outro, pelo meio do caminho, sem se dar conta. De aventura em aventura, ele se convence de que é tudo aquilo que gostaria de ser. E seria, se tivesse coragem. Porém SER exige coragem e coragem exige do SER.

A estranha

Mora em mim uma estranha que me assusta e é maior do que eu. Assusta-me porque é nua e simples, porque não está presa a lugar algum. Nem à pele, nem a passados, nem a futuros. E, para que a estranha não subverta a minha imobilizada desordem, deixo-a trancada. Ela esmurra todas as portas e grita por liberdade.

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Dançando à beira do precipício

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"Não olhe muito tempo para dentro do abismo, que o abismo começa a olhar dentro de você" - Nietzsche estava ébrio de lucidez ao criar este aforismo. Não, eu não olho. Eu danço, danço. Danço, à beira do abismo, a dança da libertação, a dança do absurdo, que é o real sentido da existência. Imóvel em suas turvas profundezas, o precipício espera o passo em falso que me levará até ele. Enquanto isso, danço ao longo do limite que separa a luz do breu, encantada pela música que me chama, que me chama, tentando provocar o desastre da razão e dos axiomas comuns. Lucidez de mãos áridas, que vive de interromper todas as danças e todas as músicas. Lucidez que me chama de volta, mas eu não ouço.

Danço à beira do abismo sem olhá-lo, erguendo a face aos céus, ao sol, às chuvas e às estrelas. Olhar para o abismo é olhar também para o medo. E, permanecer entre o medo que trava e os desejos que movem, é queda certa. O que eu quero é dançar até que a música termine, que as orquestras silenciem e todos os compassos se extinguam. Através dos movimentos em allegro que inspiram essa dança, confundo o abismo, de modo a não deixá-lo olhar para dentro de mim. Que seja a última dança, que ensaie aos acordes do adágio do perigo. Não importa.

E assim será, até as última notas, até a última clave de Sol. Depois, se eu cair e sobreviver, terei ao menos compreendido os mistérios das danças e das músicas, que desconhecem o tempo e as razões para se fazerem ouvir.

Palavras


Ah, se eu pudesse ser irresponsável com as palavras, desferi-las ao vento, a quem bem entendesse e a qualquer momento... Deixá-las à vontade, despidas de qualquer pudor, libertas de qualquer nexo ou coerência, mantidas à maxima distância possível da instância cerebral, que é onde o "bom comportamento" se processa. Mas não... Tenho que enchê-las de razão e de cuidados, porque sei de seus poderes; sei que, uma vez proferidas, não mais voltarão à minha boca. A palavra imprudente pode criar um caos - seja em quem a emite, seja em quem a recebe. Pior, pode criar paraísos inexistentes, impérios que terminam logo ali, sensações que fogem ao controle e erros, muitos erros em sua tradução aos sentimentos.

Tudo se faz com palavras, e tudo se desfaz com elas. Banalizá-las ou silenciá-las, eis a saída. Banalizar é medíocre, mas inócuo, porque usamos muitos verbos para dizer nada. Silenciar pode ser mais grave, porque há silêncios que são capazes de dizer tudo sem verbo algum. Porém, a banalização e o silêncio  têm em comum a proteção do verbo maior: sentir. E é isso que me impede de ser irresponsável com as palavras: a preservação do sentir - do meu próprio e do meu interlocutor (ou leitor).

100 Direções e "dead-ends"

E agora?

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Direita? Esquerda? Em frente? Retorno? Há situações em que se precisa de uma escolha. Na verdade, escolhas sempre são feitas, ainda que à revelia, já que não escolher é também uma escolha: escolhe-se ser paralisado pela ausência de caminhos ou ser levado pelo vento dos acasos. Nem sempre sabemos o que fazer com as direções, mas sabemos quando alguma delas pode nos levar a becos sem saída, aos "dead-ends". E aí... Aí nada... Olha-se para o céu e voa-se até a altura possível, na contramão do mundo. E tenta-se ser feliz nesse átimo de tempo, até a hora inevitável da escolha: direita, esquerda, volver! (vou ver?). Marchons, marchons! Como obedientes soldados de um mundo aparentemente ordenadinho pelas relações mornas de causa e efeito.
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É que certas estradas, mesmo que sigam na direção errada, são tão bonitas e densas que só a experiência de pass(e)ar por elas já vale a viagem. É que certas estradas são tão plenas que conseguem reunir a um só tempo: todas as direções, um beco sem saída e uma paisagem multicor jamais contemplada em outras rotas. E não terá sido em vão percorrê-las se, ao final delas, chegarmos maiores, melhores e mais humanos, influenciados pela poesia do retrovisor.

Além do mais, saídas sempre haverão de existir...
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Ao fundo uma canção, na voz de Sinatra: Who knows where the road will lead us? Only a fool may say...

O coração, este insano

Follow Your Heart

Não, não discuta com esse louco. Sim, louco, porque tudo o que não se submete aos desígnios da razão é assim classificado. E, na briga entre os dois, o corpo e a alma adoecem. Vivo de duelar comigo mesma para calar a voz desse insano, para não deixar que comande meus movimentos. Mas tentar calá-lo com o pensamento lúcido, com argumentos lógicos e empíricos, pode custar tão caro quanto deixá-lo gritar ensandecido. Paga-se o preço da imobilidade. Razão e coração em litígio resultam na imobilização da vida como consequência. E ninguém, de sã consciência, pretende deter a vida; no máximo, algumas dores que ela produz. Só que, na tentativa de impedir a repetição de dores já processadas pela memória, ou seja, pela razão, acabamos interferindo na verdade dos sentidos.

"O coração tem razões que a própria razão desconhece" - Mentira, Blaise Pascal! Ele não tem razão alguma. É um descerebrado. Ele tem, sim, vontades e o mistério de sua linguagem própria, de seus caminhos próprios, que nenhuma gramática decifrará, que nenhuma cartografia reproduzirá, que nenhum manual de boa conduta dentro das previsíveis ordenações psicossociais explicará. O que se pode esperar de um elemento cuja função, no sentido restrito, é bombear sangue e fazê-lo circular por todo um organismo, e, no sentido lato, produzir vida a partir dos mais inusitados desejos, suprimir a noção do tempo, do espaço e do ridículo? É um louco, doido varrido. Um desprocessador de princípios, por natureza.

Por essas e outras, o melhor é parar de brigar com ele. Mas, por outro lado, não hei de lhe dar plenos poderes. Ah, isso não! Porque o demente, em suas distrações e encantamentos, pode nos conduzir a abismos sem volta. Proponho-me à mais difícil das tarefas: conciliá-lo com a razão. Deixar que ambos caminhem de mãos dadas e sem atritos. Se conseguir algum êxito nesta árdua façanha, terei comigo o equilíbrio necessário para garantir alguma paz, sem sacrificar o melhor da vida: senti-la em plenitude.

Ficamos assim: se o "louco" começar a provocar emoções destrutivas, a razão, agora mais humilde, entra em cena para negociar uma forma de preservar a própria vida que o coração produz e garantir algum bem-estar interior. E o coração, por sua vez, empresta à razão crítica um pouco mais de delicadeza e sensibilidade, de modo a não deixá-la esterilizar de todo as mágicas e a capacidade de se surpreender e se emocionar.

Mas discutir com ele, não. Bobagem, perda de tempo. Fazê-lo adormecer na marra, pura ilusão, pois o doido varrido despertará subitamente à primeira distração, quando menos se espera ("Sentir é estar distraído" - quanta sabedoria em Fernando Pessoa!). Entrar em guerra com ele é, no mínimo, preparar o caminho das depressões e da amargura, porquanto se aprisiona a vida, e isso não fica nada bem na fita. Deixá-lo falar, mas sem que precise berrar. Só uns gritinhos de vez em quando. Deixá-lo se manifestar, assim como quem canta uma canção suave. O ruídos dos desassossegos só acontecem quando razão e coração insistem em falar, simultaneamente e em idiomas completamente distintos, sobre o mesmo objeto. Se a razão, teórica e pedante, disser "Não vá por aí, que, segundo o pensamento lógico, há chances se machucar", o coração deve responder: "Vou porque a vida me chama, mas quero contar com sua ajuda, se precisar voltar."

Creio que assim fica mais fácil. Teoricamente, teoricamente... Afinal, há quem diga que "a vida tem sempre razão". Tem?

É impossível ser feliz sozinho? Nem tanto...

Fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho...

Qual é, Tom? Condicionar a felicidade às parcerias únicas é meio claustrofóbico. O.k., o.k.... O amor é fundamental. Mas nem sempre dá pra ter esse amor das canções e dos poemas. E aí?

Bull shit! Quantas vezes fui feliz sozinha. Quer dizer, sozinha em termos, porque bons amigos ajudam muito nessa felicidade. E fui feliz sozinha porque tinha espaço suficiente dentro da alma para prestar atenção nas coisas, nos verdes, nas manhãs, nos sons que a vida produz, nos cenários que a natureza oferece, nas pessoas à minha volta, na nota que fez toda a diferença em uma sinfonia. Enfim, pude prestar atenção e, prestando atenção, pude alegrar meus sentidos.

Se tenho, porém, a alma e o corpo incendiados pelas paixões, decerto não percebo nada além do objeto desse desejo. Estou cega e surda para tudo o que for extrínseco ao "meu amor". Aí é felicidade relativa. Talvez mais uma ilusão de felicidade.

Pois eu já fui feliz sozinha, sim. E ja fui feliz com alguém. Experimentei das duas felicidades. E, talvez pelas razões acima, quando volto os olhos para o passado em busca de algum momento intensa e verdadeiramente feliz, detenho-me naqueles em que pude ter a posse de mim mesma. Esses momentos incluem sempre uma lua de verão, um perfume de capim cheiroso, um pôr-do-sol à beira mar, um grupo de amigos e um violão, uma bagunça aqui, uma subversão ali. Esses momentos incluem sempre o fato de eu estar prestando mais atenção em mim e no mundo do que em "pessoas únicas".

Que aqueles por mim amados e namorados possam me perdoar por esta confissão. Mas eles não significaram, necessariamente, o suprassumo da felicidade em todos os momentos, embora tenham contribuído para a felicidade de muitos deles.

Não, não é impossível ser feliz sozinho, desde que se tenha amigos, um bom convívio consigo próprio e poesia nos olhos para contemplar a vida. E o inferno infernal mesmo é o "ser infeliz a dois". Para mim, o pior dos castigos.


Desencontro marcado

Estava em cima da hora. Diante do espelho, ela tentava deixar sua imagem, na mais impecável desordem de detalhes. Cabelos cuidadosamente desarrumados, parte do ombro desnuda, jeans no estilo "trash", com estratégicos rasgos intencionais, tal qual os trajes de sua alma. O espelho refletia bem o seu modo assimétrico e rasgado de ser.

Enquanto se (des)arrumava com tanta riqueza de detalhes, pensava no que sentiria ao reencontrá-lo. A imaginação explorou todas as possibilidades. Tomada 1: poderiam retomar do ponto onde pararam , ignorar o intervalo dos anos, declarar amor eterno e viver juntos para toda a eternidade. Neste caso, correria o risco de ser feliz para sempre, e ser feliz para sempre era algo muito assustador. Não acreditava em felicidade eterna. Balela. Tomada 2: olharia dentro dos olhos dele, e espelhada neles estaria a certeza de que tudo passou. Nenhuma emoção, nenhuma reminiscência, nada a ver, dois estranhos perdidos no vazio de um pretérito imperfeito. Não, não suportaria tamanho esvaziamento amoroso. Seria admitir o tempo desperdiçado. Tomada 3: Ficariam ambos sem saber o que dizer, tentando uma comunicação imprecisa, através de subtextos, que poderiam ser indevidamente interpretados. Aí correria o risco de ficar tentada a novamente acreditar, com base em suposições, forçando as mensagens veladas a tomarem a forma exata de seus desejos. Outra fria! Nem pensar.

Entre o espelho e o corpo, mais tantas outras tomadas de cenas imaginárias se sucederam. A cada uma delas, sofria, angustiava-se, extasiava-se, viajava entre infernos e céus. Estava atrasada e exausta, já mesmo antes de sair. Precisava abandonar o espelho e encarar a vida. Esperara tanto por este encontro, e só agora, quando ele finalmente estava prestes a acontecer, tinha idéia do peso do tempo que se passou. Hora de agir. Pegou o telefone e ligou para o celular dele, provavelmente já à sua espera no local combinado:

- Alô, estou ligando pra dizer que não posso. Não, não posso ir. Estou exausta. Melhor não... Perdoe-me por isto e odeie-me, se for o caso. Poderia inventar mil desculpas para não te encontrar, mas a única verdade é que estou exausta. Odeie-me por isto, se quiser. E fique com meu beijo imaginário!

E era a mais pura verdade. A exploração mental de todas as possibilidades de ser levaram-na à total exaustão. Nenhuma forma de encontro poderia, naquele momento, superar as hipérboles do imaginário. Nem no bem, nem no mal.

Pôs-se a desconstruir a imagem meticulosamente produzida, peça por peça. Nua, deixou o corpo tombar sobre a cama, como houvesse matado leões na arena da existência.


Vertigo



Roda o tempo,
vento, invento,
rodam cores,
minhas dores,
corre-dores,
escorre-dores,
roda vida,
dividida,
minha boca,
minha louca,
minha cara
mascarada
nada a ver,
nada a VER.
Para o mundo,
que eu quero descer
!

Desprocessamento

Como deve ser escrever assim sem deixar o pensamento ordenar matematicamente as palavras? É o que tento fazer aqui, embora não seja de todo possível. Mas vale a experiência. Passar rapidamente as palavras para a superfície vazia, sem dar muito tempo ao cérebro para ordenar o pensamento. Cuspir palavras, com ou sem nexo. Fogo. Luz. Água. Mar... Mar... aMar... Gosto de "mar". Com mar se faz MARtírio, MARacujá, MARasmo, MARcar, MARavilha, MARgem, MARginal, mar, mar mar...

Eu não quero fazer sentido. Quero perder todos. Quero me desprocessar. Quero me desconstruir e espalhar cacos, pedras, vitrilhos, faíscas, ruínas de mim. Quero me desintegrar, porque o corpo pesa, comprime a alma. Não quero saber das histórias que fiz. Não quero saber porque as histórias que fiz tiveram um fim. E, se tiveram um fim, foram pedaços de histórias. Migalhas para tapar os buracos da existência. Quero aquilo que não tem começo nem fim. A energia suprema, sem forma, sem regras, sem promessas, sem passado ou futuro.

Mas por que tudo ainda continua fazendo um estúpido sentido? Um sentido absurdo e sem sentido... Amor - o único sentido. Por onde anda este ilustre personagem de toda grande história?


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Direções

Não ando em direção ao futuro. Ele que venha ao meu encontro, ora essa! :) O único tempo é viver.

O verdadeiro encontro não se reencontra


Anos se passaram desde que eles resolveram contar a história do maior amor do mundo. A cada página escrita, iam dando origem a um terceiro ser, único e indissociável. Um terceiro ser que foi criado para além deles. E, por terem se amado além do que o amor é capaz, esgotaram todas as possibilidades do real. Os corpos separaram-se ao final de dois anos - era o preço a pagar pela imortalidade. Além disso, já não precisavam mais de corpos. Estes foram exaustivamente utilizados como instrumento necessário à construção do amor maior e cumpriram bem seus papéis. Não há tragédia nessa história. E as dores ocasionais foram tão suaves que as lembranças delas hoje chegam a sorrir.

Anos se passaram... Pouco se viram, depois do desvio dos caminhos, da divisão das águas. Ele buscaria outras histórias, ela não buscaria mais nada, para não correr o risco de se contaminar. Voltaram a se encontrar um dia, num restaurante qualquer, onde em cada mesa uma história se fazia contar - certamente histórias banais, com início-meio-e-fim, regadas a vinho ou cerveja, muito diferentes da deles. Não estavam ali contando, fazendo ou refazendo uma história. Nem sequer poderiam dizer que aquilo era um reencontro, pois que reencontro é "encontrar de novo", e eles nunca se desencontraram. Havia o terceiro ser, único, atemporal e indissolúvel.

Conversavam normalmente como se o tempo não houvesse avançado. Se não estivessem ali, um diante do outro, depois de tantos anos, nada mudaria. Nada mudaria porque moravam um no outro, sem necessidade de presença física, e porque o terceiro ser, resultado da força de uma convergência amorosa interestelar do passado, desconhece tempo e distância. Não que não houvesse prazer nesse encontro. Havia, sim, muito prazer. Mas um prazer que era velho conhecido deles, sem novos acessórios. Sem precisar se enfeitar.

E, como acontece nas histórias banais, não sairiam dali da mesa para a cama, independente de desejos. Histórias como essas não se repetem. E tentar repeti-las com o corpo é o mesmo que assinar o atestado de óbito do seu encantamento. Tampouco se despediriam com a nostalgia de quem cultua pretéritos ou com a expectativa de novos encontros. Despediram-se com a certeza de sempre. De que a história que escreveram nesta vida, cada capítulo que inscreveram nas areias, nas árvores, nos mares, nos ares, nas estradas, dentro e fora de todas as paredes, era maior do que eles e tinha vida própria. Estavam condenados à cumplicidade de terem protagonizado um sonho que se legitimou, de terem amado além do que o amor é capaz, coisa que ninguém faz impunemente.

Nada de "Até um dia, até talvez, até quem sabe..." Nada de esperas. Nada de exacerbações. Nada de saudades. Não se sente falta daquilo que se tem. Seriam o encontro de sempre, o encontro "do sempre".

Nós e nós mesmos

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No final, somos nós e nós mesmos. No início também. Nos intermezzos, apenas distraímos a inevitável solidão de existir, com um encontro aqui, um desencontro ali, histórias, memórias, paixões, castelos de areia e cristais. Vamos acontecendo, nós e nós mesmos, entre uma canção e outra, entre sonhos e pesadelos, deixando por este desconhecido caminho chamado vida suores, lágrimas e outras secreções orgânicas. Sempre nós e nós mesmos, ocultos, impedidos de contrapor à luz o que de real, real mesmo, existe nos subterrâneos. Talvez o que há por dentro não seja mesmo tão real, por isso se torna instransmissível. E tentamos, tentamos, tentamos transmitir muitas vezes o que nem sabemos. Tentamos ultrapassar a epiderme, as mucosas, o peso, os ossos, as veias e caminhar para o outro com os recursos possíveis: palavras, beijos, um grito, um gemido, um gesto, um toque, um presente. Ilusões. No fundo, somos nós e nós mesmos, em nossa existência secreta, que, quanto mais grita, mais silencia o seu próprio mistério, que talvez só um vinho desvende durante o breve momento de sua entorpecência e logo depois esquece, porque, no final, somos nós e nós mesmos, sombras companheiras, agradáveis para uns, insuportáveis para outros.

É mais fácil desejar o intangível

Por que as pessoas desejam sempre aquilo que não podem tocar? E por que, à remota possibilidade de efetivação do toque, elas logo se desinteressam do objeto desejado? Eu arriscaria um palpite: por causa do desafio. Simples assim. Simples a resposta, não o ser humano, que parece atraído pela ilusão.

Esse mal dos desejos intangíveis pode ser corrigido com a consciência. Quando descobrimos em nós o mecanismo que desencadeia a atração pura e simples pelos desafios, neutralizamos a questão. É fato que, às vezes, a intangibilidade é contingencial. Podemos gostar de algo ou alguém que esteja distante ou inviável, mas não pela questão do desafio, apenas pelo puro e inevitável gostar. Admiramos as estrelas mas nem por isso desejamos tê-las em nossas mãos. Até porque seria impossível estabelecer uma estrela como meta.

Estrelas à parte, quando adquirimos a sabedoria de colocarmos o nosso desejo no que é simples e viável, nos pequenos detalhes de cara lavada do dia-a-dia, na esfera do possível, as chances de se alcançar a satisfação, ainda que não plena, são bem maiores. É no chão que as flores se multiplicam. A vida, por si, já é um grande desafio a nos chamar diariamente. Não há desafio maior do que tentar manter aquilo que já se tem ao longo do tempo.


Sinal de alerta

Quando você começa a amolecer a razão, quando passa a flexionar, de repente, tudo no diminutivo (lindinho, fofinho, presentinho, musiquinha, poeminha, soninho, amorzinho etc.), que nem um(a) debilmental, e, por outro lado, quando a vida se enche de hipérboles, como se pessoas e fatos adquirissem uma dimensão muito maior do que elas têm; quando você se pega fazendo planos mirabolantes, disposto(a) a sacrifícios e loucuras que nunca faria no fluxo linear de sua rotina, quando se vê emotivo(a) além do usual e começa a cair na esparrela de achar que a vida pode ser maravilhosa... cuidado! Ligue imediatamente o sinal de alerta. É fria! Não vá se perder por aí. Em outras palavras, não vá se apaixonar. A menos que o queira com consciência, ou esteja pronto(a) para bancar as consequências desse desassossego d'alma. O problema é que, geralmente, o alerta é ligado tarde demais.

O passado é um templo sagrado

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Como boa aquariana, não dou dada a fustigar o passado. Não porque o despreze. Absolutamente, é justo o contrário. Não o revolvo para que nada fique desarrumado em seu altar. O passado é um templo sagrado. Revisitações implicam o risco de uma nova leitura, possivelmente menos grandiosa. Tenho um solene respeito pela estrada pregressa, incluindo suas partes sombrias, incluindo as feridas e desacertos que encontrei ao longo do caminho que me trouxe até aqui. Tudo valeu, tudo foi elevado à condição de mito. Não fico por aí procurando antigos personagens ou recantos de minha história. Temo, com isso, banalizar sua importância. E, se por alguma coincidência ou obra do acaso, os reencontro, morro de medo. Morro de medo de conspurcar a história que escrevemos juntos, história que o tempo sacralizou. Rever lugares ou personagens do passado, no fundo, é como assassinarmos, por um lado, uma saudade que não morre, e, por outro, parte do encanto e mistério que a vida esconde.

Sei que, no final, nada muda tanto assim e as essências se preservam. Mas essências são essências e existências são existências. Se o tempo não interfere muito naquelas, nestas ele é determinante. Sartre devia estar certo ao dizer que a existência precede a essência.

A dor e a delícia de ser livre

Blowing in the wind

Decerto já devo ter escrito sobre o tema que me vem à mente agora. Mas não importa... Vamos falar de liberdade.

Liberdade é um sentimento (e um estado) que dá medo, mas sem o qual eu não saberia viver. Estranho, não? Como conjugar liberdade e medo? São sensações paradoxais. O medo imobiliza, a liberdade movimenta. É mais ou menos como diz a velha canção de Beto Guedes: "O medo de amar é o medo de ser livre..." (mas falemos do amor mais adiante).

Esse medo de ser livre só acontece quando paramos para pensar a liberdade, e não quando a vivenciamos, já que pensar é prender. Não dura muito. E ele existe porque a liberdade vive sempre sob constante ameaça. Esbarra aqui, ali, nos personagens do nosso afeto, nas limitações mundanas, no direito do outro, nas decisões tomadas ou a tomar... Enfim, a liberdade é um constante exercício, e parte dela é ilusão. Sabemos bem que em plenitude ela não existe, nem para os pássaros. E a fração que nos cabe, quando a conseguimos, custa caro. Muito caro...

Para chegar a essa relativa liberdade, precisei antes ser prisioneira. Assassinei sonhos, feri pessoas, abri mão de falsas ilusões e falsas seguranças, cortei vínculos importantes, mergulhei no escuro. Mas, sim, valeu a pena. Valeu a pena porque era a minha vocação e a forma mais honesta de encontrar a mim mesma.

E justamente por isso nunca consegui entender uma relação de amor que não fosse livre. Amar com liberdade é um desafio torturante, porque, com o passar do tempo, vamos querendo formas e plataformas, muitas mãos e muitos chãos. É quase uma tendência natural essa de se construir portos seguros, fazendo-os maiores até do que o mar, e exercer um certo controle sobre o outro. Até compreendermos que nada disso garante a permanência dos amores, leva tempo. Compreender que todo sentimento é livre porque é intangível e não vísivel a olho nu, que todo desejo é livre porque é um sopro e uma abstração interna, implica que sejamos antes ilustres prisioneiros de nossos erros. Na dor nos libertamos.

Contudo, acredito eu, é só na liberdade que o amor se faz pleno. O amor e todo o resto. O ir e vir por vontade própria, a não vigilância do verbo, dos gestos, a ausência de imposições, o peito aberto e sem opressões, são a única certeza de que é possível repousar em um sentimento, seja ele qual for, e em nós mesmos.

Sejamos o barco e o vento do nosso próprio oceano.

Apagão (ou Como enxergar melhor na escuridão)

E de repente tudo se apagou. Primeiro o susto, depois a indignação de ser obrigada a parar. Seguiu-se uma certa aflição. E, vendo que nada poderia fazer para que as engrenagens do século XXI voltassem a funcionar desesperadamente, resolvi experimentar a pureza do ar e do som. Pasmei ao perceber que, na escuridão, conseguia me enxergar melhor. Abri as janelas. Por sorte, soprava uma brisa salvadora pós-chuva, que me livraria do intenso calor. Já não havia desconforto. E relaxei, como nunca o fizera antes. Dispensei as velas. Uau! O caos urbano parado por quase 3 horas! Quanta paz, quanto silêncio! Troquei segredos com as nuvens, com a noite, com o cosmo. Todas as máquinas desligadas, todos os circuitos anulados. Era a vida em sua verdade, a natureza por si, sem nenhuma parafernália a acelerá-la. Pensei em como devia ser mais vida a vida de antigamente, sem TV, sem computadores, sem celulares. Familiares e amigos deviam se reunir mais, conversar mais, contemplar mais... Devia-se ouvir melhor os ruídos do vento, da chuva, da própria alma; sentir melhor a força dos céus, das árvores, das estrelas. Nenhuma pressa, nenhuma neura, nenhum artifício. Apenas a música aparecia como vítima nesse episódio de falta de energia - mas havia ainda alguma carga nas baterias do MP3 player ou rádio. Sim, ainda havia a música, além da ária magnífica na voz da natureza... Com este pensamento e uma sensação de paz, dormi convencida de que a civilização, embora inevitável, é um grande erro.

Eu não sei quem foi que apagou as luzes das cidades. Pode ter sido um boicote, um colapso da infraestrutura mal cuidada, um mero acidente. Apressaram-se em colocar a culpa na meteorologia, o que eu duvido muito. Mas danem-se os culpados. Eles nem imaginam o bem que me fizeram. Consegui acender minhas luzes no apagão.


Tem horas que...

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Tem horas que a gente tem vontade de mandar tudo à merda. Mas tudo o quê? Uma realidade, um sonho, um hábito, uma situação, uma relação, um projeto, não importa. O fato é que tem horas que a gente tem vontade de pressionar o "reset" e detonar todas as construções - reais ou imaginárias - existentes em nosso pequeno feudo. Geralmente, esses momentos ocorrem ou porque não estamos recebendo as respostas esperadas, ou porque nos sentimos diante de uma situação sem saída (no way out), ou porque há um detalhe fora do lugar, ou porque simplesmente não estamos num bom dia.

Porém, nessas horas em que a gente tem vontade de mandar tudo à merda, o melhor a fazer é dar uma pausa e aguardar um pouco. Precisamos saber exatamente o que estamos mandando à merda. E, na impulsividade, no imediatismo, não é possível ter essa consciência. Pode haver erros de interpretação, oscilações de humor, visões turvas e tantos outros fatores que são amigos da confusão. Então, nesses momentos de pouca tolerância, enfiemos a insatisfação momentânea naquele lugar e aguardemos um pouco mais. Não precisamos aguardar muito. Só o tempo de recobrar a real capacidade de avaliação dos fatos. Precisamos de certezas para medidas radicais. Precisamos constatar que os erros se repetem, que o detalhe fora do lugar não vai mesmo voltar ao seu local de origem, que não houve falhas de interpretação, e que não estamos num mau momento, daqueles de extrema sensibilidade, onde tudo adquire dimensões gigantescas e ilusórias.

Uma vez constatados os erros - ou as deficiências -, aí sim, podemos - e devemos - mandar tudo à merda. E sem estardalhaço, sem destemperos, sem gritos; se possível, até em silêncio, pois trata-se de uma decisão interior. Desta forma - e só desta forma -, não correremos o risco de futuros arrependimentos ou de cometer injustiças. Isso só levaria à desmoralização de nossos atos. Problemas devem ser eliminados. Mas antes é preciso saber se o problema é realmente um problema ou se é um problema ocasionalmente inventado, um problema-fantasma.

Abstração



Sou uma abstração. Minha vida, minha história, minhas circunstâncias não passam de pretextos para que eu possa me fazer representar dentro de um mundo insano, feito de pesadas concretudes. Uma abstração. Esta é minha verdadeira identidade. Algo que se confunde com as lânguidas notas de um blues, algo como partículas que se expandem e vibram no ar, como nuvens que não se prendem por muito tempo a uma forma. Como invólucro, um corpo acidental, que funciona como receptáculo e referência gravitacional apenas - ai, como pesam os corpos!... Quem me toca nem sempre toca em mim. Em contrapartida, há tantos que me tocam sem me tocar: poetas, músicos, animais, pessoas que nunca vi...

Sou uma abstração, sem muita causa, sem muito efeito, sem muita compreensão da existência.

Os imaturos do amor

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A cada vez que me envolvo com alguém, um temor irrompe: estarei me envolvendo com um imaturo de amor? Sim, porque, quando atingimos um certo nível de maturação de sentimentos, cruzar com os imaturos é o que de pior pode acontecer. Seria impossível trilhar o mesmo caminho e na mesma direção.

Não há como reconhecê-los a um primeiro momento. Este é o problema. Só depois de um certo tempo é que podemos identificá-los. São aqueles que precisam experimentar a sensação de perda para compreender a real importância do outro; são os que não se preocupam em alimentar o afeto por, ilusoriamente, 'acharem' que têm a pessoa nas mãos; os que ignoram que, com a sequência de suas ações ou não ações, podem ser esquecidos; os que precisam de desafios permanentes para se motivarem numa relação. Oh, não! Ao menor sinal de detecção de um imaturo de amor, eu abandono o barco, por mais que a correnteza me castigue. Não manipularei, muito menos me deixarei manipular.

Prosseguir seria pouco inteligente e deveras trabalhoso. Os imaturos de amor exigem que a gente parta pro jogo, que crie situações artificiais, impedindo-nos, assim, de repousarmos o sentimento, os movimentos... Para mim, particularmente, seria muito fácil o jogo. Já aprendi o suficiente com a vida. E, exatamente por ter aprendido a jogar, é que aprendi também a não querer o jogo. Sei exatamente quais são os movimentos de atração e de repulsão. Mas ficar refém de jogo? Não, nunca. Jogando uma vez, terei de jogar sempre. Situação pobre e muito, muito, extenuante.

Dou-me ao luxo, depois de tantos açoites, de querer um pouco mais do que isso, ainda que esse pouco mais seja a fidelidade a mim mesma e a paz interior. E, quantos aos imaturos de amor, que a vida venha a lhes ensinar um dia que o amor de verdade se constrói na tessitura das simplicidades, das verdades e da saúde.


Não há forma ideal de sair de cena


Qual a forma ideal de se dizer adeus, de abandonar a cena e o personagem? Não há. Todos os movimentos de saída ferem (a começar pelo próprio parto que nos dá a vida). O apagar das luzes dói de qualquer maneira, seja esta civilizada ou irascível. Se as pessoas chegam à porta de saída é porque, de algum modo, se magoaram, se frustraram ou quebraram algo que antes era importante e agora deixou de ser. E isso inviabiliza qualquer despedida ideal.

Contudo, creio que a pior forma de se ausentar - já que a melhor não existe - é aquela em que não se pontua; aquela em que as palavras, ao invés da pronúncia que as libertariam, escolhem fazer o caminho de volta ao pensamento, saturando-o, intoxicando-o e confundindo-o. Aí, tudo o que não foi dito pode demorar a se esgotar, pode se subverter ou tomar formas ásperas e inadequadas. E, inevitavelmente, surgirão dúvidas recalcitrantes, recorrentes, que atormentarão por algum tempo - o tempo necessário para a dissolução do edema emocional -, por meios bem menos naturais. Sim, porque o tempo é sempre o tempo, esse senhor que tudo resolve, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra.

O silêncio e a moderação nas rupturas podem ser imponentes, educados e elegantes, mas são também pusilânimes. Há muito mais verdade nas impulsividades momentaneamente ofensivas ou destemperadas, que a emoção deixa escapar, do que na omissão comportada dos verbos. Além disso, quem ousaria recriminar a verdade, que, por ser verdade, já chega carregada de perdão, ao contrário das farsas do silêncio?

Parece que o mundo, em geral, não está preparado para as verdades; nem para dizê-las, nem para ouvi-las. E isso torna certas saídas muito mais torturantes, muito mais feias, antiestéticas. Mas, como não há mesmo uma forma ideal de sair de cena, e como somos um núcleo de imperfeições, resta-nos seguir em frente nesse desvio (ou atalho) do modo possível, cuidando para que não nos tornemos um ser humano pior. Afinal, há sempre uma nova estrada a cada saída. E a vida é mesmo essa sucessão de encontros, desencontros e reencontros.

O exorcismo pelas palavras

Por que escrevo? Escrevo para me libertar de mim, para equacionar melhor os meus dilemas, trilemas, quadrilemas, etc. Ou para entender mais claramente o compasso da humanidade, para dar forma ao que, de tão abstrato, incomoda. Escrevo para me exorcizar. Poderia compor uma canção, se tivesse talento musical; mas não é o caso. Poderia pagar um analista, o efeito seria quase o mesmo. Mas, depois de anos e anos de terapia, e de conhecer o processo de cor e salteado, seria uma alternativa pouco excitante para mim, que tenho necessidade de criar. (Parêntesis: devo assinalar aqui que recomendo sempre uma boa psicoterapia para que os mortais se percam menos de si próprios. A mim fez-me um enorme bem.) Assim, já que gozo de alguma intimidade com as palavras e não tenho problemas com a autoexpressão, prefiro escrever.

Meus textos não são necessariamente as minhas verdades e, em absoluto, têm a pretensão de se tornar universais ou imperativos. Até porque a palavra sempre muda conforme o olhar e o momento vivido. Muitas vezes transformo em verbos o que gostaria de ser ou deles faço uso para tentar explicar certos estados de confusão. Da mesma forma, o que escrevo hoje pode vir a ser o que virei a criticar amanhã. Seja como for, a palavra (principalmente a escrita) muitas vezes me serve como bom sistema de drenagem. Precisamos purgar, fazer emergir, ejetar o que se acumula dentro de nós. O ser humano privado de expressão perde o sentido.

Alegro-me, portanto, quando alguns textos que aqui expurgo me ajudam a oxigenar o pensamento. E não são raras as vezes em que acabo influenciada pelas minhas próprias palavras. Pode parecer um paradoxo que a autora influencie a si própria. Mas não penso como Mário Quintana, quando diz: "Nunca me releio... Tenho um medo enorme de me influenciar. É verdadeiramente catastrófico quando um autor se transforma no seu discípulo." Ao contrário do poeta, eu sempre me releio. Gosto de acompanhar as variações, as mudanças, as nuances da minha existência semântica. E não tenho medo de influenciar a mim mesma, se a influência for boa.

Para mim, escrever é uma hemorragia salvadora. Acho que todos deveriam tentar, de alguma forma. Danem-se os erros de português, as sintaxes e as regências indevidas. Isso é detalhe. O que importa é se libertar do peso das ideias que efervescem e expeli-las ao léu, do jeito possível. Fica tudo tão mais leve depois da expulsão dos verbos que deixaram de acontecer ou que aconteceram de modo errado...

Os doces estertores dos 20 anos

Quando eu era jovem (mais jovem ;) ) e comecei a descobrir o fascinante mundo das ideias, tudo parecia possível, tangível, instigante, desafiador. É próprio da juventude as paixões levadas ao extremo. É próprio da juventude levantar bandeiras, mergulhar visceralmente em ideais grandiosos, querer arrumar o mundo. E eu não fugi à regra. No passado, junto com meus jovens companheiros de ideais, também queria mudar o mundo. Nosso templo era o Diretório Acadêmico, nossos gurus os autores de doutrinas radicais e perfeitas no papel (no caso, Marx, Hegels, Trotsky, Sartre, Gide, Nietzsche, Artaud, etc. etc.). Ganhávamos as ruas, fazíamos barulho, clamávamos por justiça, inspirados pelo gigantismo de sonhos que seriam exterminados aos primeiros lampejos da maturidade, e nem desconfiávamos disto. Deve ser uma questão hormonal essa ebulição dos 20 anos, isso da vontade de poder, de ser tomado por fúrias exacerbadas contra instituições e sistemas opressores e decadentes. A juventude quer e precisa lutar! Causas não faltam nunca. Fundos musicais muito menos.

Não que sonhos e paixões feneçam na maturidade, mas nesse estágio eles acontecem, incontestavelmente, de forma mais modesta, mais silenciosa, menos agressiva e menos coletiva. Com o tempo, eu, pelo menos, fui percebendo que as ideias que me insuflavam eram, de certa forma, influenciadas pelos grandes pensadores - em especial, os libertários -, e por isso mesmo não eram exatamente minhas. Com o tempo, compreendi que o mundo não muda fácil; quando muito, passa-se de uma ditadura a outra, de um extremo a outro, de um erro a outro. Com o tempo, compreendi que valores mudam, rebeldia sossega, euforias passam. E, no final das contas, acabamos, muitas vezes, por nos surpreender agindo "como nossos pais".

Sinto uma imensa saudade daquela imperativa (e hiperativa) avidez juvenil, que gritava alto, muito alto... Era um verdadeiro poema. Na verdade, ela não morreu, porque tornou-se parte integrante da minha história e responsável pelo resultado que hoje sou. Mas os ventos nos atiram à maturidade, ainda que à revelia. E isso não chega a ser um caos. A maior vantagem da maturidade é que nela podemos ser crianças, jovens ou maduros, conforme as circunstâncias, só que com o discernimento de saber usar esses estados de ser na hora apropriada. E a maior desvantagem é não termos mais tanto tempo para errar, tombar e recomeçar. Daí porque a voz da razão, muitas vezes, precisa calar a voz das paixões na marra.

Poema sem poema

Eu queria fazer um poema

Sem regras, sem temas...
Mas como fazê-lo
Se de mim levaram a poesia?
Como fazê-lo
Com a palavra crua e fria?

Por isso, e só por isso, peço:
Devolvam-me a poesia,
O meu olhar de crença,
O sentido dos meus dias,
As veias da existência.

Do contrário,
Como fazer um poema?
Como fazer um poema
De mãos vazias?
Sem idas, sem vindas,
Sem voltas, sem revoltas?

Devolvam meus suspiros,
Meus ais, meus trilhos,
Para que eu possa, enfim,
Reencontrar os versos
Que pertencem a mim.

A história de Maria Vitória

Agora que passara dos 30, Maria Vitória cismou de querer casar. Queria ter filhos, constituir família, de preferência com um parceiro que fosse homem de bem e lhe pudesse oferecer padrão de vida estável. Queria se casar. Já estava cansada de aventuras, de amores efêmeros, de viver o imprevisível. Com o tempo, sua meta transformou-se em obsessão. Procurava marido em qualquer canto; nas ruas, nas festas, em velórios e casórios. Nas noitadas não, porque homens disponíveis em casas noturnas eram... noturnos. Ou seja, não passavam mesmo de uma noite; uma noite lasciva - regada a champagne ou cerveja, dependendo do nível. Voltou-se ela, portanto, para este fim: casar e levar uma vida certinha. Frequentava cursos e inventava atividades em cujo ambiente pudesse estar aquele que viria a realizar o seu sonho maior. Queria tudo nos moldes tradicionais: casar na igreja, vestida de branco, jogar o buquê, posar para fotos cruzando tacinhas de cristal... Enfim, tudo a que tinha direito.

Porém, apesar de envidar todos os seus esforços nessa busca alucinada, o noivo nunca aparecia. O tempo passava e o máximo que conseguia era uma série de promessas baratas, com posterior saída à francesa. Quando o sujeito desconfiava da real intenção de Maria Vitória, dava logo um jeito de inventar viagens, problemas, doenças ou qualquer outro tipo de pretexto para pular fora do barco que o levaria à 'forca'. Mas Maria Vitória não desistia, queria porque queria casar. Àquela altura já era uma questão de honra. Não iria morrer solteirona. Começou a ficar deprimida, recolhida. Esquivou-se dos amigos, deixou de lado tudo o que a fazia sorrir ou deleitar-se, de alguma forma. Desorientada, entrou para a Igreja Universal do Reino de Deus. Lá certamente haveria de encontrar um marido. E finalmente, em nome de Jesus, encontrou. Aleluia, irmãos! Ezequiel era seu nome, um pequeno comerciante, de pouca cultura, mas trabalhador, honesto e... fanático. (clique aqui para continuar a história de Maria Vitória)