"Por quê?"



"Por quê?" - Não faça desta pergunta uma arma, a vítima pode ser você!

26 de ago. de 2023

Perspectivas do Tempo


 

Um conto

 Um conto do livro “Sonhos de Einstein”, de Alan Lightman. Reflexões sobre a relatividade do tempo. Este é o meu preferido.

2 DE JUNHO DE 1905

Um pêssego marrom, murcho, é retirado da lata de lixo e colocado na mesa para ficar rosado. Ele fica rosado, endurece, é levado em um saco de compras para a mercearia, colocado em uma prateleira, removido e encaixotado, devolvido à árvore com botões rosados. 

Neste mundo, o tempo flui para trás. Uma velha definhada está sentada em uma cadeira; ela mal se move, seu rosto é vermelho e inchado, praticamente perdeu a visão, perdeu a audição, sua respiração é sibilada como o farfalhar das folhas secas nas pedras. 

Os anos passam. Ela recebe algumas poucas visitas. Gradualmente, a mulher ganha forças, come mais, desaparecem as profundas rugas em seu rosto. Ela ouve vozes, música. Sombras indefiníveis surgem com a luz e aparecem os contornos e imagens de mesas, cadeiras, rostos de pessoas. A mulher passa a sair de sua pequena casa, quando o clima é bom vai ao mercado, ocasionalmente visita uma amiga, vai a algum café beber chá. Apanha agulhas e fios na última gaveta de sua cômoda e faz crochê. Sorri quando gosta do que faz. 

Certo dia, seu marido, o rosto esbranquiçado, é trazido para casa. Em poucas horas, suas bochechas ficam rosadas, ele se ergue, primeiro com o corpo encurvado, depois fica em pé e fala com ela. A casa dela passa a ser a casa deles. Comem juntos, contam anedotas, riem. Viajam pelo país, visitam amigos.

Os cabelos brancos dela escurecem, surgem mechas marrons, sua voz reverbera em novos tons. Ela comparece a uma festa de despedida na escola, começa a lecionar história. Ela ama seus alunos, conversa com eles depois das aulas. Ela lê na hora do almoço e à noite. Encontra amigos e discute história e atualidades. Ajuda o marido com as contas na farmácia, caminha com ele pelo sopé das montanhas, faz amor com ele. Sua pele fica macia, os cabelos longos e castanhos, os seios firmes. Ela vê o marido pela primeira vez na biblioteca da universidade e retribui seus olhares. Ela assiste às aulas. Forma-se na escola secundária, seus pais e irmã chorando de felicidade.

Ela vive em casa com os pais, passa horas com a mãe passeando pelo bosque próximo à casa, ajuda a lavar os pratos. Ela conta histórias para a irmã menor, à noite lêem para ela antes de dormir, vai ficando pequena. Ela engatinha. Mama no peito da mãe. 

Um homem de meia-idade deixa o palco de um auditório em Estocolmo com uma medalha nas mãos. Aperta a mão do presidente da Academia Sueca de Ciências, recebe o Prêmio Nobel de física, ouve a gloriosa exaltação. O homem pensa por poucos instantes no prêmio que está para receber. Seus pensamentos bruscamente convergem para vinte anos adiante, quando estará trabalhando sozinho em uma saleta apenas com lápis e papel. Trabalhará dia e noite, serão vários começos infrutíferos, enchendo o cesto de lixo com malsucedidas cadeias de equações e seqüências lógicas. 

Mas, em algumas noites, ele voltará à escrivaninha sabendo que aprendeu coisas sobre a Natureza que ninguém jamais soube; aventurou-se na floresta e encontrou luz, descobriu segredos preciosos. Nestas noites, seu coração baterá como se estivesse apaixonado. A expectativa de sentir o coração em disparada, a antevisão da época em que será jovem e desconhecido e não terá medo de errar, tomam conta dele agora que está sentado nesta poltrona no auditório em Estocolmo, a uma grande distância da minúscula voz do presidente que neste momento anuncia seu nome.

Um homem está diante da cova de seu amigo, joga um punhado de terra no caixão, sente a chuva fria de abril em seu rosto. Mas não chora. Ele prevê o dia em que os pulmões do amigo serão fortes, quando seu amigo deixará o leito, estará rindo, quando os dois estarão juntos, bebendo, velejando e conversando. Ele não chora. Espera ansiosamente por um dia específico do futuro que ele lembra, quando ele e o amigo comerão sanduíches em uma mesinha baixa, quando ele mencionará seu medo de ficar velho e não ser amado e seu amigo concordará suavemente com a cabeça, quando os pingos de chuva fizerem trilhos no vidro da janela.


9 de set. de 2010

Por quê? x Por que não?

"Por quê?"- pergunte em abundância, mas não espere por respostas certas. Afinal, na vida, nunca encontramos respostas perfeitas. E, se porventura houver algumas que sejam, digamos, adequadas, raramente serão únicas. Porém, a pergunta é boa, quando não nos toma muito tempo. Por quê? Porque pontua. Marca onde está a dúvida. O que já é grande coisa. A confusão do olhar nunca é bem-vinda. O que faz mal é perdermos boa parte do tempo à espera de respostas; é nos deixarmos imobilizar, perscrutando possibilidades que raramente haverão de se confirmar. Melhor é passar para a próxima etapa e seguir vivendo. Melhor é estender a pergunta e transformá-la em "Por que não?". O "por que não?" projeta-nos a uma ação, contrapondo-se à natureza paralisante do "por quê?" Não exige respostas, explicações, sofismas, só atitudes e tentativas. Na incerta busca por respostas, há o risco de sermos neutralizados pelo excesso de cautelas, miopias ou obsessões que não levam a lugar algum e deixam o ar viciado. Estamos aqui mais para viver do que para pensar o viver, não é mesmo? Deixemos a tarefa de pensar os escombros da existência para os filósofos. Temos um compromisso com a nossa própria história, que deve se fazer contar. Vivamos então para poder contá-la. Vamos ao próximo passo, sem medo e sem amarras. Por que não?

14 de ago. de 2010

Trajetória dos erros

Primeiro, tenta-se a estratégia, a razão pura e kantiana, a lógica dialética, o bom senso, o caminho linear e claro, e todos os recursos racionais. Você sinaliza, aponta, tenta acertar, tenta impedir o pior, mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Depois, vêm as contorções, as confusões, as contrações, as digladiações, as turbulências emocionais, o inconformismo, a impotência. Você quer salvar a história, a qualquer preço, por achar que é uma história maior, mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Segue-se então uma certa melancolia, a frustração de ver que a história lhe escapa das mãos, e já não há como conduzi-la unilateralmente. Você ainda tenta mais um pouco, porém já bem mais descrente. Palavras e movimentos se desencontram, sintonias se perdem, encantos se desfazem, e a plenitude vai se esfacelando paulatinamente. Nada mais parece inteiro, absoluto, inabalável, íntegro, no lugar. Não há lugar. Tudo é fração, e, por ser fração, perde força. Mais uma vez, agora sem tantas expectativas, você insiste em refazer o pequeno feudo encantado e feliz. Mas não lhe ouvem, não lhe atendem, não lhe entendem - ou não querem entender. Por fim, e por cansaço de dar murros em ponta de faca, de não compreender e de não ser compreendido, chega-se ao 'tanto faz', que é a mais medíocre das posturas, mas, certamente, a menos dolorosa. Estaria tudo certo, não fosse um único inconveniente do 'tanto faz': o risco de não guardar boas e grandes memórias, limitando-se à pequenez de banalizar tudo o que foi imenso com suas propriedades anestésicas. Mas agora tanto faz...!

13 de ago. de 2010

A dor de não despencar

E então, quando menos se espera, a gente leva um golpe. Até aí nada de inusitado. Golpes acontecem a todo instante, a diferença está em como cada um lida com eles. Então eu pergunto: de quem é a dor maior? De quem se descabela, se desorienta, se fragiliza, veste o papel de vítima, inspira culpa, cuidados e piedade? Ou de quem segura a onda; daquele que, como uma árvore, morre de pé, que reza sua dor em silêncio, que briga com todas as tensões e encara o rosto feio das mágoas para, num esforço sobre-humano, tentar seguir em frente sem fazer alardes, sem insistências vãs, sem se tornar um peso pra quem quer que seja? Fica no ar a questão. O sibilante choro dos 'ingênuos' ou a discreta contenção dos 'fortes'? Seria o frágil tão frágil e o forte tão forte? Muitas vezes, é justamente o inverso, e é preciso relativizar.

Já estive nos dois lados. No começo dessa longa estrada, fiz barulho, gritei, chorei e apelei, inconformada. E, enquanto duelava comigo e com o mundo, achando que não suportaria golpes e perdas, a dor ia se dissipando, sem que eu percebesse, até sumir por completo. Passado algum tempo, já nem me lembraria mais das tão dramáticas contusões. Era muito fácil passar para uma próxima etapa, até por causa das hemorragias. Ainda havia uma sucessão de golpes pela frente. Mas, ao longo dessa corrente de desassossegos, passei a achar feio as reações intempestivas, primárias e estridentes. Ainda que eu conseguisse lucrar algo com elas, nada acontecia pelo que eu era, pelo fluxo natural da vida, mas pela pressão, pelo pieguismo, pelo cansaço, e muitas vezes pelo desconforto que eu, intencionalmente, causava no outro.

Então passei para o outro lado, 'precisei ser forte'. Não desmontar, não despencar, não desarrumar os cabelos, não borrar a maquiagem, não me esquecer das outras peças da engrenagem, por mais lacerante que fosse uma situação. Não que os 'fracos' confessos sejam seres desprezíveis, mas é que a vida não os perdoa, e, no fundo, nem eles mesmos. Fraquezas todos temos, ou não seríamos humanos. Mas a vida não gosta da sua cara (da fraqueza), tampouco a respeita. E aos que não querem pagar o preço de expor suas fraquezas não resta outra escolha senão se armar de uma pseudofortaleza. E aí, além de sofrerem as dores lancinantes de golpes, perdas ou danos, ainda carregarão o peso dessa consciência. E como dói não poder despencar! Como dói ter de prosseguir nas frias trilhas dessa relativa e aparente lucidez. Como dói não berrar a nossa dor, neutralizar nossos espasmos, sofrer para dentro.

As pessoas olharão para esses 'frágeis às avessas' e dirão: "Eles sabem se virar, são bem resolvidos!". E muito pouco lhes darão, por acharem que não é necessário. Mais ocupadas com os carentes de plantão que as sugam, são incapazes de imaginar como é pungente, naqueles que 'sabem se virar', a dor de não despencar. Estão longe de perceber que, para que isso acontecesse, foi preciso que esses patéticos 'equilibristas', que trazem na alma um quê quase chapliniano, fizessem morrer dentro deles um pedaço da própria vida. Um pedaço que morreu de pé, sem despencar.

O medo do apego e o apego do medo

Não é de se estranhar o medo do apego em quem já se esborrachou mil vezes pelos trilhos da vida e do tempo. Mas como é difícil não se apegar ou impedir que a nós se apeguem! Pelo menos nas formas superlativas. Como é difícil fingir que ignoramos o olhar suplicante dos carentes de afeto; erigir um muro que impeça a ultrapassagem ao nosso universo mais íntimo e vulnerável; medir o tamanho de um abraço e a temperatura das palavras. Há que se pisar em ovos. Porém, fato é que quem assim se manifesta geralmente tem lá suas razões. Dentre elas, a de não querer abrir caminhos para uma possível dependência emocional - do outro e, por vezes, de si mesmo. Quem opta pelos desapegos decerto muito já se apegou. E entendeu que de grandes apegos podem vir grandes dores mais adiante. Entendeu que laços, de início suaves, podem se transformar em nós inextricáveis, dissolúveis apenas ao corte brusco da lâmina fria e asséptica da razão. E esse "desapegado", portanto, não haverá de querer que o outro passe a morar em seu universo para ter que sofrer depois, quando descobrir que o melhor é habitar a si próprio, acima de tudo, ainda que numa construção precária. Apego, em princípio, é coisa boa e natural; o problema é que, com o tempo, esse sentimento - que nem sempre tem a ver com amor ou amizade em estado genuíno - tende a convergir para os exageros, e isso não é bom. E não é mais forte ou mais frio aquele que tenta evitá-lo. Muitas vezes o medo do apego carrega o apego do medo à realidade de quem muito sofreu. Medo de perder novamente a si próprio. Medo de ver ou outro se perder em quem, depois de múltiplos açoites, conseguiu se encontrar.

Procura-se

Foi vista pela última vez perambulando descalça e quase feliz pela Avenida dos Incautos. Sorridente, cantarolava uma canção não identificada e olhava para o céu. Há alguns dias - ou anos-luz, não se sabe bem ao certo -, a criatura desapareceu. Uns dizem tê-la visto na esquina da Rua Solidão com o Beco do Mistério. Outros garantem que passaram pela foragida na Praça dos Delírios. Se alguém tiver notícias deste ser errante, favor não telefonar nem avisar à polícia. Chame-a baixinho pelo nome e diga que não há mais perigo. Que o mundo às vezes é bom. Que ela pode voltar para a sua dona e criadora, que por ela procura, inconsolável. Afinal é a sua melhor criação, porquanto a única verdadeira, embora não explicável pela razão.

Sentido (ou falta de)

Tragam-me algo que me acorde os sentidos. Um álcool forte. Um impacto súbito. Um amoníaco. Uma droga. Um berro que se faça ouvir. Mostrem-me algo que faça sentido. Meus sentidos precisam de sentido. A vida, esta a mim me parece um grande absurdo. Falta uma palavra-chave ou a última peça do quebra-cabeça. Falta um porquê definitivo para todos os comos, quandos, ondes e quens. E quanto mais prossigo, menos sentido faço, menos sentido vejo nas coisas, nas pessoas, no tempo. Eu vivo. Mas e daí? Vivo apenas. Vivo com a sensação de faltar algo visceral. Não sou triste nem feliz. Sou a oscilação constante entre um estado e outro. Não sou mais nem sou menos. Sem escolhas, cumpro a existência. De tanto existir achei que pudesse alcançar um sentido. Mas não. Nenhum sentido. Passeio entre o moto-contínuo e o fogo fátuo, entre o ufanismo e a hipocrisia. Pior é se ver de fora do Grande Teatro. Se ao menos representasse bem, talvez o papel me trouxesse ao menos um falso sentido. Mas não sou das farsas. Pelo menos, não mais. Não fui boa atriz neste estrondoso espetáculo. Fui um fracasso dramatúrgico.

Falaram-me, certa vez, que o sentido da vida estava no amor. De fato, em todas as vezes que amei de amor, tive a ilusão de ter todos os sentidos exacerbados e de fazer todo o sentido do mundo. Na experiência do amor havia uma espécie de sagração, uma facilidade imensa de saber me encontrar. Eram experiências entorpecentes. Nada ao redor havia mudado. Mas o olhar de quem ama jamais se convence dessas imobilizações. O olhar de quem ama quer ver beleza, generosidade, cor e magia em movimento. Mas, talvez em função de tanto movimento, esses amores passam (não deveriam). E a relidade pós-euforia vai constatar, por repetidas vezes, que nada mudou. Ninguém mudou. Era tudo fruto da alucinógena condição de quem se lançava às paixões. Uma extasiante e deliciosa alucinação. Válida seria se não fosse tão espasmódica, e se nos impedisse de, logo adiante, quando o amor acaba, darmos de cara com a consciência dessa alucinação. E quanto mais consciência, menos sentido.

Levi Strauss levantou a voz e disse: "Tudo oferece um sentido, senão nada faz sentido". Mas o sentido que tudo oferece, aos meus olhos, é uma tremenda falta de sentido. Uma loucura. Uma inversão. Uma subversão. Um passatempo enquanto a gente espera pelo último de nossos dias.

O leitor certamente verá neste texto o reflexo do pessimismo. Ó, não! Não o é. Brinco com todas essas peças soltas, rio delas, danço com o acaso. O que falta mesmo é sentido. Talvez não haja profundezas, talvez não devêssemos colocar tantas expectativas em SER. Ou talvez eu não pertença a este mundo, que parece não ter nada de meu e onde seria uma visitante estranha, sentada na ponta do sofá. É isso...

Razão e Emoção

heart and mind

A emoção é a vida em ebulição. É densa, quente, imprevisível e tocante. É o movimento, as tempestades e os raios de sol da existência. É genitora de risos e lágrimas, de iras e paixões. Pode ser feia e lúgubre, pode ser deslumbrante e reluzente. Pode ser tudo que não passe despercebido, porque é hiperbólica. A razão, sua antípoda, já não gosta de aparecer. É discreta, silenciosa, comedida, desprovida de calor e ímpetos, como todo agente que calcula, pensa, se defende e se protege. Decerto, na maioria das vezes, um ser racional já foi escravo de suas emoções em algum tempo remoto. E ficou tão assustado com os espasmos delas, com sua força transformadora - quando não destruidora -, que se rendeu ao sossego morno do pensamento lógico, objetivo, estruturado, para poder melhor decidir e, quem sabe, reduzir um pouco do sofrimento que a vida muitas vezes impõe.

Razão e emoção não deveriam ser conflitantes. Uma não é melhor nem pior que a outra. São apenas diferentes. Uma revolve, outra resolve. Uma envolve, outra desenvolve. Ocorre que, na medição de forças entre esses dois parâmetros tão antagônicos, o indivíduo que os vivencia é o grande perdedor. Quando a razão briga com a emoção, ou vice-versa, surge uma espécie de paralisia, fruto de um caos entre ideias (razão) e sentimentos (emoção). E, a partir daí, uma série de outros estados indesejáveis se sucedem: medo, insegurança, anulação, desconfiança, e por aí vai.

Levando-se em conta que a razão não deve adentrar o território da emoção, levanta-se a dúvida: qual seria a situação ideal então? A resposta que aparece como óbvia aos meus olhos é única: razão e emoção devem andar de mãos dadas, no mesmo nível, respeitando-se mutuamente e sabendo, cada uma, a sua hora de entrar em cena. Não podem atuar de forma concomitante, é fato. Afinal, não é da natureza do coração pulsar no cérebro, assim como não é da natureza do cérebro planejar um coração. Não se ama com a cabeça, é verdade. Mas, por outro lado, é com ela que se decide por um amor em paz ou pela autopreservação.


Não ficar no problema, porém sem dele fugir.

Optar por não ficar no problema não significa dele fugir. Fugir do problema é quando se desconversa, quando não se enfrenta as verdades, quando não se encara os fatos, quando se mascara uma realidade. A fuga é um movimento fácil. E é o que a maioria faz para evitar desconfortos imediatos. Há sempre uma porta que foi esquecida aberta ou passagens subterrâneas que levam à ilusão de um outro lugar.
Já escolher não ficar no problema exige muito mais de nossas forças e de nossa compreensão. Neste caso, a gente enxerga tudo, constata o obstáculo e sai sem fugir, espreitado pelo olhar vigilante da consciência. Sai porque entende que permanecer no que foi percebido como problema é o caminho mais fácil para se perder e se ralar. A fuga, mais cedo ou mais tarde, será sempre surpreendida pela própria vida que vem nos cobrar. Mas a opção consciente de não ficar é quase um ato de heroísmo, é uma escolha dolorosa para evitar dores maiores.

Um problema é sempre um problema, desde o momento de seu diagnóstico. E insistir nele é uma teimosia improfícua. A melhor solução é, a meu ver, tentar eliminá-lo, sobretudo se o impasse não se resolve e torna a se repetir e repetir. Porém, sem fugir... Assumindo todos os ônus e riscos, sentindo as dores de todas as lesões que essa escolha ocasiona.

Mas, afinal, o que é um problema, aqui neste contexto? - alguém poderá indagar. Um problema é tudo aquilo que suprime o bem-estar, que gera tensão, desassossegos ou inseguranças, eu diria. E quem gosta e consegue conviver com isso a longo prazo pode estar a um passo da insensatez. Eu não, eu não...

Fugir não fujo, mas escolho não ficar.

Decidir? Só quando necessário.



A cada vez que tomo uma decisão, morro um pouco. A própria palavra traz em si uma "cisão". E o pior: nunca se sabe se a decisão tomada foi a melhor, já que não nos é permitido saber aonde levariam os caminhos descartados. Por mim, não decidiria nunca. Deixaria sempre a vida me levar e os ventos soprarem os caminhos. Quando posso, é isso que faço mesmo, sem culpa e sem medo. Mas há ocasiões em que não há escolha a não ser escolher, ou seja, decidir.

Nem sempre é fácil lidar com tomadas de decisão. Mas a experiência e uma sucessão de tombos nos fornecem um elemento importante para isso: a razão. Sim, a razão. Não dê ouvidos a quem lhe diz: "Decida com o coração". Errado. Ouça o seu coração, sim, mas decida com a razão. Coração não sabe decidir, não sabe fazer cortes. É impreciso e se alimenta de sonhos. Na hora de decidir, é mesmo a cabeça que entra em cena. E, ainda assim, como é difícil ! Pelo menos para mim, que tudo faço para não me arrepender no futuro.

E quanto mais possibilidades à nossa frente, mais difícil será decidir. Prefiro que a vida me dê um número modesto de opções do que uma enxurrada delas. Quando há a possibilidade de não decidir, é essa que escolho. Decido não decidir. Porém, quando não tem mais jeito, quando a não decisão (que não significa indecisão, no meu caso) implica sabidamente um problema, então encho-me de coragem e vou lá. E aí faço direito, "comme il faut". Nada de imediatismos, nada de açodamentos. É um processo longo. Pensar, avaliar, comparar, priorizar, autoconhecer-se, estimar: estes são os verbos. Com eles vou lá e faço o corte (ou os cortes) necessário, ciente de que estarei perdendo algo que nunca vou poder vivenciar, talvez até a melhor parte - como saber? Enfim, pode-se querer tudo, o que não se pode é ter tudo. O coração pode doer, que doa. Talvez passe, talvez não. O processo é duro, inexorável.

Para finalizar, depois de pensar e pensar, se ainda houver dúvida, melhor não decidir. Decidir na incerteza é decidir errado. Tremeu? Recue. Oscilou? Espere. Se isto aconteceu, é porque a hora de decidir não chegou.


Existe 'caso mal resolvido'?

Já acreditei nessa história de 'casos mal resolvidos'. Mas, com o tempo, compreendi que eles não existem. Os protagonistas desses 'casos' é que ficam bem ou mal resolvidos. Há quem pense que para resolver uma história que não terminou do jeito desejado é preciso esgotar todas as palavras ou mergulhar até o mais profundo talvegue de um rio de emoções desencontradas. É um ponto de vista, mas não o meu. Se alguém me diz: "Tal relação ficou mal resolvida", limito-me a comentar: "Então pronto! Ficou resolvida como 'mal resolvida.'" Isso porque muitas soluções são mais facilmente encontradas dentro - e não fora - de nós. A conversa que temos realmente de ter é com os nossos próprios botões, e a partir dos fatos disponíveis. Uma sequência de fatos e de comportamentos é eloquente o bastante para fornecer o diagnóstico (e o prognóstico) de qualquer relacionamento.

Além disso, se pensarmos bem, nenhum final é feliz, ideal, satisfatório. Sair de uma relação com as palavras certas, dissecando o adeus em minúcias, numa interminável e desgastante sessão de perguntas e respostas, também pode ser doloroso. E, ainda por cima, não é garantia de que os sentimentos não se tornarão recorrentes. Talvez o mais indolor dos finais seja aquele em que o sentimento se dissolve durante a própria relação. Assim, sem a força desse sentimento, que morreu sem ser percebido, todo o resto se transforma em desimportâncias, e o ponto final acontece quase que naturalmente, sem traumas, nem expectativas, nem recalcitrâncias. Mas nem sempre é assim.

Em conversa com amigos, sempre vem à tona esse papo de "casos mal resolvidos". Quase todo mundo tem um pra contar. Ouço-os se queixarem, com frequência, de que, em suas frustradas relações, "ficou algo por dizer", "ficou algo por entender", e que "é preciso um último diálogo" para virar a página definitivamente (se é que o definitivo é mesmo definitivo). Mas será que a vida útil do romance não foi feita para acabar justamente naquela página? Nem todas as histórias são brindadas com finais felizes e esclarecedores, o que, em hipótese alguma, é motivo para menosprezar a sua importância. E depender da outra parte para determinar cada final de caso, à nossa conveniência, admitamos, é bastante trabalhoso.

Também não é incomum ver pessoas acorrentadas a impasses de seu passado, ao longo de anos, até mesmo décadas. Neste caso, nem o tempo, que sempre ajuda a pulverizar dores, mágoas e culpas, conseguiu ser um bom remédio. E aí a coisa pode acabar assumindo níveis patológicos. É preciso tomar cuidado. Não há nada pior do que se tornar um prisioneiro, principalmente do passado, que é tão estático quanto as velhas fotografias que o representam sem nada poder fazer.

Não estou aqui a subestimar a dor de ninguém. Sei que lidar com sentimentos não coisa é fácil, sobretudo com sentimentos que um dia foram feridos. Mas penso que, se sedimentarmos o eixo de nossa órbita em nós mesmos, e não no outro, tudo ficará mais claro. Por exemplo, um sintoma de saudade não precisa ser torturante, nem condicionado ao personagem que a ela deu origem. A saudade é nossa e só nossa; permitamo-nos senti-la, sem resistências, por alguns momentos, e pronto! Depois ela se vai, ainda que venha a nos revisitar mais adiante. Não temos necessariamente que agir ou criar expectativas por causa de súbitas nostalgias; isso gera tensão. Certamente, com a sucessão de novas experiências e urgências, certas lembranças tendem a se tornar cada vez mais raras. Se uma história terminou era porque assim tinha de ser. E que importa se ela pode ou não retornar amanhã? Amanhã é amanhã, e viver é uma urgência. Tudo faz parte dessa louca aventura de existir: o bem, o mal, o prazer, a dor, os erros, os acertos, as dúvidas, as certezas, tudo... E nada permanece no lugar o tempo todo. Só nós, que moramos dentro de nós... Vivamos, pois, a partir de nossa única e inevitável existência.


A dor é a saudade do riso

Todo drama nada mais é do que a saudade do riso. Só que o drama costuma tomar proporções gigantescas, assumir um aspecto folhetinesco, exagerado. Parece até que as dores são providas de importância e seriedade maiores do que aquelas que uma alegria contém. Mas não é bem assim, creio. Quando doemos, estamos sentindo falta de momentos felizes, despretensiosos e simples. Falta desses momentos que, quando irrompem, parecem ser feitos de pequenas dimensões porque estamos ali distraídos e ocupados demais em vivê-los para prestarmos atenção no seu tamanho ou tentar explicá-los. Pois ouso afirmar que o riso é a grande dimensão da existência, é onde nos libertamos e exercemos nossa função principal (viver em prazer), já que investimos nele o melhor de cada sentido vital.

Se as dores parecem mais hiperbólicas é porque, talvez, seu eco reverbere mais polifonicamente dentro de de nós. E tal ocorre porque, para senti-las, há prejuízo e descompensação dos sentidos, que se apresentam bem longe de sua plenitude e muito voltados para dentro, saudosos de passados ou medrosos de futuros.

Portanto, o que eu teria a dizer aqui e agora é: investir na alegria e no riso, investir na leveza de ser, trocar luminosidade com o outro. Há sempre um lado engraçado de se ver a vida, até mesmo a partir dos nossos próprios erros e ruínas. A comicidade pode ser algo muito mais sério do que se possa supor. Então, a palavra de ordem é "sair em busca do riso" sempre que possível.

Nem sempre é possível, bem o sabemos. Não somos hienas ufanistas, tampouco o riso cabe em todas as horas. Mas também não chamemos pelas dores, colocando sobrecargas desnecessárias nos acontecimentos. Elas têm uma capacidade invejável de se apressar em chegar, sempre que as chamamos.

Investir no riso e reinventar momentos de alegria é a grande arte. E não é uma arte menor, ao contrário do que possa parecer. O réquiem trágico de uma dor não canta senão o desejo de repetir os dias de simples e despretensiosas felicidades.

Coisa de alma

Elas são teimosas. Teimosas de existir. Teimosas de não se deixarem prender às ordenações. E então o desejo insiste, apesar do desaconselhável, do inadequado, imprudente, incoerente, irreverente. E tudo por dentro diz SIM quando o resto é feito de NÃO. Coisa de alma. Alma não conhece limites, diferenças, distâncias, errado ou certo. Alma simplesmente deseja. Não importa se o corpo caminha em direção ao precipício, não importam as contra-indicações, não importa o impossível. Não há como impedi-la de cumprir sua existência. E cumprir sua existência significa apenas sentir. Inapelavelmente sentir, entre todas as discordâncias dialéticas, entre todos os erros do tempo ou do espaço. E, quando a realidade parece querer esmagá-la, ela sonha para se salvar. E se liberta...


Quando o SIM diz NÃO




A gente fala, a gente sinaliza, a gente mostra o perigo, a gente chama de volta, e não veem, não ouvem. Por meses, anos, tentamos alertar que, se certos erros não forem sanados, tudo se vai no escorredouro do tempo, de modo irreversível. E que haverá um momento em que todos os esforços terão sido em vão. Mas parece que não nos ouvem. E, se ouvem, não nos acreditam. Nada fazem, nada tentam mudar, continuam a repetir os mesmos movimentos - ou a ausência deles - como se fossem divindades acima do bem e do mal, que pudessem assumir todos os controles do destino e daqueles que por ele passam.

Então, chega a hora inapelável do NÃO, e tudo muda. Quando todas as tentativas já se exauriram, aí conseguem enxergar o SIM. Querem porque querem o SIM, quase que obstinadamente. Chegam a prometer o mundo, sem ao menos consultá-lo sobre sua disponibilidade de ser ofertado. Mas é só porque o SIM agora está longe, inacessível, fora de controle. Aí tentam fazer em um dia o que se recusaram a fazer durante anos. Insistem em nos convencer de que tudo será diferente, de que tudo será como antes amanhã... Não, não e não. Quando se deixa escapar o tempo dos reparos, não há mais o que se fazer. O tempo oxidou todos os componentes da história e suas possibilidades. Nada resta a não ser imagens congeladas de um passado remoto, quase irreal. É assim...

Não sei por que alguns só compreendem o SIM no momento inexorável do NÃO. Pergunto-me se o homem não precisa da eterna insatisfação para dar continuidade à sua sobrevivência emocional. É uma pena... É uma pena... Não era pra ser assim.

Errando o texto

Algumas vezes, a gente erra o texto. Outras, o texto erra a gente. Quando o texto erra a gente, não é nossa culpa; culpe-se a vida, o destino, o tempo ou qualquer fenômeno externo a nós. Mas quando a gente erra o texto, aí é tudo de ruim. É algo assim como a fragmentação de uma mensagem que pretendeu acertar. É a frustração do verbo, a antiexpressão, um azul que desbotou, um atentado à comunicação, que, por sua vez, é um atentado ao que se pode chamar de encontro. E, no final, só nós resta a triste tarefa de admitir o erro. Isto corresponde a um desencontro.

Errar o texto é uma falha frequente quando o pensamento não está organizado ou quando as sensações se confundem. Errar o texto significa que não detemos o controle momentâneo da nossa existência. Acontece muito quando há algum tipo de medo ou conflitos internos presentes. Ou, ainda, quando o possível receptor do nosso verbo não se encontra aberto e legível. Algo bastante comum entre os mortais.

Só que nenhuma dessas teóricas explicações minimizam o meu mal-estar ao errar um texto. Não gosto e não gosto e não gosto. Não gosto porque vivo de me pensar - pelo que pago preço alto -, vivo de previsibilidades, vivo de arquitetar estruturas e de me proteger contra o desconhecido. Assim, errar um texto significa me errar. E hoje eu me errei. Paciência... Agora é tentar arrumar as palavras na próxima vez. Mas aí é a "próxima vez", e só Deus sabe o que, quando e com quem vai ser a próxima vez.

Ih! Não era nada disso que eu queria dizer. Errei o texto todo de novo.

Caos

Já se sentiram assim, de um jeito em que qualquer processo criativo se torna inexequível? Assim, como se a existência estivesse sob o efeito de algum gás paralisante? Assim, entregue a uma lassidão que anula todo tipo de interferência sobre as coisas? Assim, como se se colidissem todos os pensamentos, formando destroços envoltos em uma nuvem confusa? Assim, como uma negação heliotrópica? Como se o Nada se instaurasse sobre as nossas soberanias, sejam elas de fantasia ou realidade? Já se sentiram assim? Pois é assim que me sinto. Mal consigo começar a contar a mais simples das histórias.

Tudo se confunde. E o mais sábio, nessas horas, é se abandonar às confusões. Tentar explicá-las, quando elas estão no auge de sua hiperatividade, é como lutar contra as correntezas. Não ouso me manifestar quando duvido de tudo (até de mim), quando as palavras são improfícuas para assinalar sensações como estas. Sensações de hecatombes e maremotos; sensações que misturam dores e prazeres; sensações que estão para além da História. Sensações que, inevitavelmente, passam...

Avesso semântico



Pior do que não encontrar as palavras é ter de medi-las. Pior do que ter de medi-las é arriscar errá-las. Pior do que errá-las é ter de engoli-las, e ficar com esse peso na boca do estômago comprimindo o tanto que se desejou dizer. Ajuda-me a libertá-las, e eu as pronunciarei como quem canta uma canção. (Marcia Cardoso)

Sem metades

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Não me deem metades. Não me acessem pela metade. Não gosto de metades. Nem mesmo de caras metades (onde dois ficam reduzidos a um). Não gosto de metade do caminho, não gosto de pessoas pela metade, de conversas pela metade, de meias verdades, de meias mentiras. Se não posso ter a unidade, se não posso ser a unidade, prefiro então pequenos dízimos, quando não o nada. Os dízimos pelo menos funcionam como modestas sugestões, preâmbulos de alguma coisa, qualquer coisa que pretenda a sua integralidade mais adiante. Mas metades não, porque não são nem uma coisa, nem outra. Ou pior: podem ser uma coisa e outra, sem a convicção de ser. Metade de mim não sou eu. Viver pelo meio eu não vivo. Tudo o que eu puder ser, viver ou doar é integral, ainda que seja por um minuto, ainda que não haja sequências, ainda que eu viva o supérfluo ou a contradição. Essa divisão no meio é ingrata. E eu, que só sei ser inteira, em cada minúsculo movimento, vivo batendo de frente com a vida, repleta de meios-termos e de seres de meias-faces.

Note-se aqui que não falo de extremos, mas de inteiros, de um... Não falo de intermediários, mas de metades. É preciso não confundir intermezzos com metades. As primaveras, por exemplo, são agradáveis estações intermediárias, mas são primaveras inteiras e cumprem todo o seu ciclo. Gosto do intermediário, do equilíbrio, só não gosto de metades, do “pela metade”, do meio sim ou meio não. Metades são medíocres. Se não puderem me dar o inteiro, deem-me o nada, mas nunca a metade. Metades não matam minha sede, que é grande e inteira.


Álgebra amorosa

Estava ela às voltas com uma equação irresolvível. Sabia apenas que havia um único elemento não-incógnito: o fato de "não poder ser". É... Esta parte estava bem clara: "não podia ser". Sabia disto desde o começo, sempre soube. Mas o que fazer com os outros tantos x e y que se proliferavam a partir do coração? Com esses incógnitos e perigosos elementos? Como resolver essa torturante equação? Não podia ser, mas era inevitável impedir todo o resto que era antes mesmo do "não poder ser". A cada dia os elementos incógnitos do coração ganhavam vida própria e perpetravam as vísceras e a alma.

O que fazer com esses inúteis e soberanos sentimentos? - pensava. Onde colocá-los? Como processá-los? Como legitimá-los? Lugar para eles não havia no mundo. Uma grande loucura. Mas, certamente, haveria de existir alguma matemática possível. Impedir o fato seria um problema menor. É fácil impedir os fatos, na medida em que se cala a voz do desejo ou do amor. O mundo nada perceberia e, portanto, o salvo-conduto ficaria assegurado. Mas o que se faz com toda essa vida ao avesso? Por onde ela deve escapar? Não, não há escape imediato possível. E a compressão de tanta vida, por não caber nos recônditos secretos de um único ser, resulta em dor insuportável. Dor de ter de existir sem poder cumprir a própria existência. Ela já sabe que tudo em si vai doer. Vai doer muito. Mas sabe também que não vai morrer, para seu desassossego. Prepara-se. Caminha para a sua sentença, sem impedir o coração de desenhar seu curso à mão livre e invisível.

A única solução possível: não pode ser. Mas pode ser por algum átimo do tempo. Dias, minutos, segundos que sejam. E, quem sabe, nesse átimo de tempo, não se consiga tocar a eternidade? Então, tendo-se sobrevivido, tudo terá valido a pena.

Desconstruções

É... As pessoas saem de dentro da gente. Pelo tempo possível, tentamos segurá-las em nossos interiores, com alguma incrédula esperança de que elas não vão desabitar a nossa geografia; de que haverá um salvo-conduto ou uma razão que justifique mantê-las vivas e pulsantes em nós, tal qual sua antiga imagem no retrovisor da história. Passeamos por um sem número de ideias, hipóteses, concessões, explicações que possam evitar a desconstrução desses retirantes acidentais. Mas sabemos que é só uma questão de tempo. E essa saída do outro em nós é tão inóspita que não depende nem de nós, nem de quem sai. Acontece à revelia, muitas vezes ao ponto de nem sequer nos permitir lembrar quando o corte epistemológico ocorreu.

E assim as pessoas se vão do nosso pequeno universo sem perceberem, da mesma forma que não percebemos o momento em que o seu vazio se instaurou de vez. Damo-nos conta de que seu lugar não anda habitado quando nos surpreendemos sem fazer perguntas ou procurar respostas sobre os movimentos ou, muito mais provavelmente, sobre a ausência de movimentos que, decerto, determinou o exílio. Segue-se um lamento e, posteriormente, uma rendição final ao fato. Nada mais a fazer.

Não, pessoas não são substituíveis, é o que penso. Mas encontros sim. E sempre haverá novos encontros, novas chegadas, novas partidas e, até mesmo, novos reencontros. A vida não se imobiliza. E também tem aqueles raros personagens que hão de permanecer para sempre na bagagem de nossa existência, transcendidos e imortalizados.

Aos que ficaram, o meu eterno agradecimento pela solidez e grandeza do encontro "marcado". Aos que se deixaram partir: "Bon voyage" pelos caminhos invisíveis por onde não andarei.

Para quem está de saída

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Melhor não sair à francesa. Os franceses podem ser "très sofistiqués" em seu "savoir vivre", mas em matéria de saídas são um verdadeiro desastre. Melhor sair à brasileira mesmo; de preferência, com todas as letras e de cabeça erguida.
As formas de saída podem agravar ou atenuar o suplício das partidas. Não devemos bater a porta com força nem tampouco deixá-la entreaberta. Bater a porta com força nos torna ofensivos, deixá-la entreaberta nos torna covardes.

É, eu sei que não é fácil fechar a porta direitinho. Mas, saindo de maneira correta, ainda é possível preservar na memória o melhor do que foi vivido por detrás da porta que se fecha e permitir futuros reencontros, sob novas formas.

Aquele que fica provavelmente não há de merecer as fugas mal engendradas nem as incertezas que geram os verbos não pronunciados. É preciso dizer por que estamos saindo, pois é assim que libertamos o outro do fantasma das dúvidas, que tanto desassossegam a alma.

Aquele que parte deve fazê-lo em transparência, sem temer as consequências de seus movimentos, já que ninguém é obrigado a aprisionar-se no outro. E, certamente, esse outro há de compreender o movimento de saída, se a porta for fechada de maneira correta. Palavras resolvem tudo, por mais difícil que seja a pronúncia de algumas delas. Sua ausência, no entanto, pode ser mais ofensiva do que uma agressão física, por vezes.

Então, fechemos as portas da maneira certa, da maneira digna. Sem medos ou hesitações. Com todas as dores ou saudades antecipadas, mas com a integridade do nosso ser, com o rosto sob a luz, para que aquele que fica possa nos ver, nos compreender, e até mesmo ter a oportunidade de um adeus decente e o benefício de alguma eventual claridade que entra pela fresta da porta. E nada de fugir pela janela, porque aí a coisa piora.