"Por quê?"



"Por quê?" - Não faça desta pergunta uma arma, a vítima pode ser você!

26 de ago. de 2023

Perspectivas do Tempo


 

Um conto

 Um conto do livro “Sonhos de Einstein”, de Alan Lightman. Reflexões sobre a relatividade do tempo. Este é o meu preferido.

2 DE JUNHO DE 1905

Um pêssego marrom, murcho, é retirado da lata de lixo e colocado na mesa para ficar rosado. Ele fica rosado, endurece, é levado em um saco de compras para a mercearia, colocado em uma prateleira, removido e encaixotado, devolvido à árvore com botões rosados. 

Neste mundo, o tempo flui para trás. Uma velha definhada está sentada em uma cadeira; ela mal se move, seu rosto é vermelho e inchado, praticamente perdeu a visão, perdeu a audição, sua respiração é sibilada como o farfalhar das folhas secas nas pedras. 

Os anos passam. Ela recebe algumas poucas visitas. Gradualmente, a mulher ganha forças, come mais, desaparecem as profundas rugas em seu rosto. Ela ouve vozes, música. Sombras indefiníveis surgem com a luz e aparecem os contornos e imagens de mesas, cadeiras, rostos de pessoas. A mulher passa a sair de sua pequena casa, quando o clima é bom vai ao mercado, ocasionalmente visita uma amiga, vai a algum café beber chá. Apanha agulhas e fios na última gaveta de sua cômoda e faz crochê. Sorri quando gosta do que faz. 

Certo dia, seu marido, o rosto esbranquiçado, é trazido para casa. Em poucas horas, suas bochechas ficam rosadas, ele se ergue, primeiro com o corpo encurvado, depois fica em pé e fala com ela. A casa dela passa a ser a casa deles. Comem juntos, contam anedotas, riem. Viajam pelo país, visitam amigos.

Os cabelos brancos dela escurecem, surgem mechas marrons, sua voz reverbera em novos tons. Ela comparece a uma festa de despedida na escola, começa a lecionar história. Ela ama seus alunos, conversa com eles depois das aulas. Ela lê na hora do almoço e à noite. Encontra amigos e discute história e atualidades. Ajuda o marido com as contas na farmácia, caminha com ele pelo sopé das montanhas, faz amor com ele. Sua pele fica macia, os cabelos longos e castanhos, os seios firmes. Ela vê o marido pela primeira vez na biblioteca da universidade e retribui seus olhares. Ela assiste às aulas. Forma-se na escola secundária, seus pais e irmã chorando de felicidade.

Ela vive em casa com os pais, passa horas com a mãe passeando pelo bosque próximo à casa, ajuda a lavar os pratos. Ela conta histórias para a irmã menor, à noite lêem para ela antes de dormir, vai ficando pequena. Ela engatinha. Mama no peito da mãe. 

Um homem de meia-idade deixa o palco de um auditório em Estocolmo com uma medalha nas mãos. Aperta a mão do presidente da Academia Sueca de Ciências, recebe o Prêmio Nobel de física, ouve a gloriosa exaltação. O homem pensa por poucos instantes no prêmio que está para receber. Seus pensamentos bruscamente convergem para vinte anos adiante, quando estará trabalhando sozinho em uma saleta apenas com lápis e papel. Trabalhará dia e noite, serão vários começos infrutíferos, enchendo o cesto de lixo com malsucedidas cadeias de equações e seqüências lógicas. 

Mas, em algumas noites, ele voltará à escrivaninha sabendo que aprendeu coisas sobre a Natureza que ninguém jamais soube; aventurou-se na floresta e encontrou luz, descobriu segredos preciosos. Nestas noites, seu coração baterá como se estivesse apaixonado. A expectativa de sentir o coração em disparada, a antevisão da época em que será jovem e desconhecido e não terá medo de errar, tomam conta dele agora que está sentado nesta poltrona no auditório em Estocolmo, a uma grande distância da minúscula voz do presidente que neste momento anuncia seu nome.

Um homem está diante da cova de seu amigo, joga um punhado de terra no caixão, sente a chuva fria de abril em seu rosto. Mas não chora. Ele prevê o dia em que os pulmões do amigo serão fortes, quando seu amigo deixará o leito, estará rindo, quando os dois estarão juntos, bebendo, velejando e conversando. Ele não chora. Espera ansiosamente por um dia específico do futuro que ele lembra, quando ele e o amigo comerão sanduíches em uma mesinha baixa, quando ele mencionará seu medo de ficar velho e não ser amado e seu amigo concordará suavemente com a cabeça, quando os pingos de chuva fizerem trilhos no vidro da janela.